Entrevista a Edson Athayde, autor de «Jonas Vai Morrer»

O brasileiro Edson Athayde, que se tornou conhecido através do mundo da publicidade, está agora voltado para a literatura e lançou recentemente o seu novo romance, Jonas Vai Morrer, obra escrita no âmbito de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, durante uma residência literária na cidade-berço. O enredo decorre precisamente em Guimarães 2012, nos finais dos anos 80. Trata-se de um romance que o próprio autor cataloga de como quase-policial e que, por sua sugestão, deve ser ouvido ao som de uma balada dos Smiths, ou dos Radiohead. Mas para conhecer melhor o livro (e Edson Athayde) leia esta entrevista que o escritor deu via email ao Porta-Livros.

Jonas vai morrer é um livro bastante intimista. Pôs muito de si nas personagens?
Acho que o exercício foi o contrário: criar personagens muito distintos da minha personalidade e trajectória. Os cenários não. Posso dizer que estive em todos aqueles lugares, mas vivi situações num mundo paralelo aos dos personagens da história.

Os protagonistas deste romance são pessoas algo perturbadas. Sente-se fascinado por este tipo de mentes que «fogem» à norma?
Gosto de uma frase do Caetano Veloso: “Ao perto, ninguém é normal”. Do ponto de vista da ficção, os errados, os tortos, os rotos são sempre mais interessantes dos que os banais.

Além, naturalmente, da própria paisagem, de que forma Guimarães influenciou a escrita deste romance?
A única coisa que eu tinha antes de começar a escrever o livro era o seu título. E esse projecto estava reservado para ser escrito em Buenos Aires. A partir do momento em que ficou decidido que eu iria tocar a obra no âmbito de Guimarães 2012, isso tornou-se o principal vértice do meu trabalho. Aqueles personagens e aquelas tramas só nasceriam em Guimarães, só apareceram porque eu estava lá e queria contar uma história naquele cenário. O grande exemplo é o personagem Pedro. A sua principal característica é ser uma pessoa sem um passado. Isso só ocorreu-me pelo contraponto a Guimarães, a cidade com mais história do país.

Houve algum motivo especial para escolher os anos 80 como época deste enredo?
Gosto de histórias de época. Mas, no caso, os anos 80 aparecem como um factor credibilizador de uma história de um tempo onde as pessoas não vivem a falar ao telemóvel e a fazer pesquisas no Google. Você até pode escrever um livro de mistério nos dias de hoje, mas acho mais charmoso fazer isso numa época em que as pessoas têm de fazer as suas investigações de maneira mais pessoal.

Revelou-se um livro difícil de escrever, nomeadamente a parte final, quando esteve doente. Foi um alívio libertar-se da história ou fica de tal modo ligado às personagens que lhe custa deixá-las?
Não tenho grande pudores em relação aos personagens. Se eles têm vida própria, quem sou eu para impedir que morram ou que matem-se uns aos outros. No caso, a única coisa que dificultou foi que não queria um final totalmente soturno, sem uma linha qualquer de esperança. Foi complicado encontrar as portas que me permitissem ser coerente com o resto do livro mas, ao mesmo tempo, deixar um sinal mais optimista.

Jonas Vai Morrer poderia ser catalogado de diversas formas quanto ao género. Se fosse dono de uma livraria em que estante o colocaria?
Bem, ele está na prateleira dos autores portugueses (o que muito me orgulha).
Quanto ao género digo sempre que ele é um quase-policial.

Sei que gosta de ouvir música enquanto escreve. E para quem lê este o seu novo romance recomenda alguma banda sonora?
Qualquer balada dos The Smiths, sem dúvida. Radiohead também serve.

Aproveita ideias que teve para anúncios para elaborar cenas no romance, ou, por outro lado, há cenas que acha que poderiam dar um bom anúncio?
Não há qualquer canal comunicante entre as duas actividades no que toca a conteúdos.

Que argumentos utilizaria para «vender» Jonas Vai Morrer a um potencial leitor?
Trata-se de um livro que procura o equilíbrio entre uma trama ágil e o respeito pela língua portuguesa. Uma prosa que quer-se prima de alguma poesia.

Há algum motivo especial para os seus romances terem sempre um Pedro como protagonista?
Gosto de nomes simples e bíblicos. Essa é uma regra. A outra é que os personagens é que escolhem os seus nomes. E há sempre um que diz-me chamar-se Pedro.

Que diferenças pode apontar ao escritor Edson Athayde desde o seu romance de estreia O Rapaz das Fotografias Eternas até ao presente Jonas Vai Morrer?
Acho que o «Jonas» é um livro mais «adulto». Ao obrigar-me fugir do realismo fantástico (universo que me é muito caro) e, assim, dosear também mais a ligação com a poesia e com a metaliguagem, acabou por resultar num romance mais «seco». Não sei se o próximo vai seguir esse caminho ou voltar para a minha maneira anterior de escrita, mas gostei do exercício.

Depois de já se ter envolvido em tantas actividades criativas, pensa continuar de futuro pela literatura ou vai dedicar-se a algo novo?
A minha praia é contar histórias, independente dos formatos e suportes. Teatro, cinema, televisão, nada está fora do meu campo de vista. Mas gosto muito dos livros. Pretendo daqui a uns dois anos ter outro romance para apresentar.

George R.R. Martin em BD com «O Cavaleiro de Westeros»

A Saída de Emergência editou recentemente O Cavaleiro de Westeros, uma obra em banda desenhada da autoria de George Martin, sobre honra, violência e amizade feita em parceria com Ben Avery e Mike S. Miller.

Sobre o livro: «O continente de Westeros é o cenário onde se desenrola a saga de George R. R. Martin, as Crónicas de Gelo e Fogo.
O Cavaleiro de Westeros decorre cerca de cem anos antes do início do primeiro livro das Crónicas, no tempo do rei Daeron, com o reino em paz e a dinastia Targaryen no auge do seu poder.
Quando a vida de um cavaleiro termina, a sua morte pode ser o começo de uma nova vida para o seu escudeiro. Intitulando-se de “Sor Duncan, o Alto”, o jovem Dunk parte em busca de fama e glória no torneio de Vaufreixo, mas também sonha em prestar juramento como cavaleiro dos Sete Reinos. No caminho, encontra um rapaz misterioso que está determinado em ajudá-lo na sua demanda.
Infelizmente para Dunk, o mundo pode não estar preparado para um cavaleiro que mantém a sua honra. E os seus métodos cavalheirescos podem vir a ser a sua ruína…»

Entrevista a Maria Inês Almeida e Joaquim Vieira, autores da colecção Duarte e Marta

«Estas são as histórias de mistério, intriga e acção que todos os jovens gostam de ler, mas actualizadas para o século XXI» – palavras de Joaquim Vieira (JV), que, em parceria (e sintonia) com Maria Inês Almeida (MIA), se envolveu numa grande aventura, a criação de uma colecção de livros de ficção para jovens (Duarte e Marta, uma edição Porto Editora), desde Junho nas livrarias.
Os dois primeiros passos já foram dados – Mistério no Pavilhão de Portugal e Ameaça no Vale do Douroe nesta entrevista ao Porta-Livros (feita via @mail) os autores, ambos jornalistas, explicam como aqui chegaram na companhia de Duarte e Marta e revelam-nos até onde os pretendem levar à caça de aventuras. Como diz Maria Inês Almeida, «As aventuras surgem se estivermos atentos ao que está à nossa volta e aos problemas dos outros.»

Como surgiu esta ideia de se lançarem numa colecção para jovens?
JV: Conhecemo-nos no âmbito de outro projecto profissional que não chegou a concretizar-se, e, dado que ambos tínhamos experiência no campo editorial, interrogámo-nos sobre se não seria interessante lançar em co-autoria uma colecção para jovens. A primeira dica foi da Maria Inês, e eu aproveitei-a e não a larguei mais.
MIA: Quem escreve para crianças também está contaminado pela sede de aventuras. Achámos que o facto de sermos de gerações diferentes também nos faria ter sensibilidades complementares e estar atentos a coisas diferentes. São formas diferentes de ver o mundo, e isso é desafiador e estimulante no próprio desenho da colecção, porque abre mais os jovens, não em resignação perante o mundo que há, mas na vontade de ajudar em fazer o mundo. O mundo está a fazer-se, não está feito. Assim como os jovens. Assim como nós. À medida que os anos passam nós olhamos para o mundo que já foi. Os jovens estão a olhar para o mundo que ainda não é. E isso desafia-nos.

Querem apresentar-nos estes dois heróis? E já agora, como chegaram aos nomes Marta e Duarte?
JV: São dois jovens, um rapaz e uma rapariga, colegas de turma, que vivem em Lisboa (embora ele venha do Porto) e que, devido à sua generosidade e predisposição para ajudar os outros e resolver problemas com que deparem, acabam envolvidos em aventuras que os vão aproximar como amigos. Chegámos a estes nomes porque nos soaram bem, depois de termos experimentado outros.
MIA:  O Duarte e Marta gostam de música, têm curiosidades, os seus próprios interesses (a Marta por exemplo colecciona selos personalizados), gostam de estar com amigos, têm Facebook e têm um sentido de justiça e ideias muito concretas: acham que é preciso lutar pelas coisas em que acreditam, com noções de ajuda aos outros e de solidariedade. Estão também muito virados para os aspectos práticos da vida e, nessa medida, são bons a resolver problemas concretos. Ambos sabem que uma boa amizade pode ser tão forte como um primeiro amor.

Que cuidados tiveram na construção das personagens tendo em conta que se dirigem a um público especial?
JV: Dado que se trata de um público ainda em formação, há toda uma série de valores consensualmente aceites como positivos que devem ser preservados neste tipo de livros e que caracterizam as personagens principais.
MIA: Que fossem personagens bem dispostas, cativantes e interessadas pelos outros e pelo que os rodeia. Devia passar também a ideia de que não estalamos os dedos e dizemos: «Agora quero viver uma aventura.» As aventuras surgem se estivermos atentos ao que está à nossa volta e aos problemas dos outros.

Sendo vocês, os autores, de gerações diferentes, notaram diferenças no entendimento que faziam das peculiaridades dos adolescentes?
JV: Sim, mas isso até pode ser uma vantagem, porque temos conseguido harmonizar essas diferenças e chegar a um entendimento, elevando, quanto a mim, a exigência com que os livros são produzidos.
MIA: Sim, mas como já referi são sensibilidades complementares, e isso é um desafio. Encontramo-nos a meio caminho.

Contactaram jovens da idade da Marta e do Duarte para que vos ajudassem a construir as suas personalidades?
JV: Não particularmente para este efeito, mas aproveitámos a observação daqueles que conhecemos. No meu caso, o facto de ter um filho com a idade aproximada do Duarte foi uma vantagem.
MIA: No meu caso, o meu filho tem 4 anos mas tem umas amigas vizinhas, mais velhas, entre os 7 e 12 anos. Tornei-me ainda mais atenta, mas não para construir personalidades. Atenta ao que usam, como falam, como pensam em relação a determinadas coisas. É importante estar dentro desta realidade. E é muito engraçado pois elas já dão dicas e pedem para que escreva sobre coisas… No outro dia, as de 7 anos pediram-me se podia escrever um livro sobre animais de estimação.

Que tipo de investigação fizeram para compor os dois primeiros livros?
JV: Foi bastante variada. Posso dizer que para o primeiro volume contactámos com um ex-responsável da PSP e um professor de engenharia civil, para certas especificidades técnicas, e no segundo visitámos as caves do vinho do Porto em Vila Nova de Gaia. E em ambos os casos fizemos observações em locais onde se passa a acção. Além de muita pesquisa na internet. Até procurámos saber como se fabricam bombas detonadas à distância por telemóvel.
MIA: Vou dar um exemplo: para o primeiro volume, andámos a investigar se, do ponto de vista técnico, uma explosão que rebentasse dois ou três cabos da pala do Pavilhão de Portugal poderia acarretar a quebra dos restantes. Neste aspecto, a história devia ter consistência e não tratar-se de uma mera fantasia. A conclusão a que chegámos foi muito curiosa, mas prefiro não a mencionar. Quem ler o livro percebe.

Pretendem pôr os protagonistas a percorrer o país (e o estrangeiro) nas suas aventuras? É uma forma de ensinar algo aos leitores? Têm essa preocupação de transmitir algo mais além da história?
JV: Embora o objectivo principal seja o entretenimento, temos o entendimento de que uma colecção deste tipo, dirigida a um público jovem, deve possuir uma componente didáctica, e por isso os protagonistas irão viajar por Portugal (em primeira prioridade) e, quiçá, pelo estrangeiro.
MIA: De qualquer forma, o nosso objectivo não é dar lições. Mas não há dúvida de que a viagem, a descrição de outros lugares e comunidades, é uma forma de transmitir conhecimentos. Basta ver como muitos jovens conheceram as sete partidas do mundo a partir das aventuras de Tintin.

Têm em «Uma Aventura» um concorrente de peso. Encaram essa colecção como um «rival» ou antes como uma inspiração, dado o reconhecido sucesso da mesma?
JV: Eu não diria nem uma coisa nem outra, porque nunca li nenhum volume dessa colecção (sou do tempo das aventuras dos 5, da Enid Blyton). Mas é claro que temos a noção da sua existência e do êxito que teve. Ter produzido já à volta de uns 50 títulos, segundo creio, é obra, e isso não pode deixar de ser reconhecido. É natural que se veja o nosso trabalho como concorrencial, mas não tivemos essa intenção. O tipo de protagonistas (apenas um rapaz e uma rapariga) é diferente, e procurámos actualizá-los e eles e às histórias para o século XXI, com tudo o que caracteriza o novo quotidiano da juventude.
MIA: Eu sou da geração da Aventura, e não posso dizer que não tenho presentes esses livros, que consumi na minha adolescência com tanto entusiasmo. Mas se alguma relação existe é sem dúvida de inspiração, não de rivalidade, porque julgo existirem consideráveis diferenças entre um projecto e outro. De qualquer maneira, quanto mais não seja pela dimensão, o nosso não pode comparar-se com ele.

Como é o processo de escrever a quatro mãos? Está cada um de vocês mais ligado a um dos personagens ou determinado tipo de situações?
JV: Para cada novo volume, começamos por nos reunirmos para delinear a história que queremos contar. Depois, com esse esqueleto já de pé, cada um de nós escreve as partes correspondentes a certas componentes da acção, trocando-as por email, fazendo observações críticas e tentando encaixá-las. No fim, voltamos a reunir, para harmonizar todo o conjunto. Nenhum de nós está ligado a uma personagem em particular.
MIA: Como nos encontramos em permanente interacção, estamos sempre a reagir ao que o outro diz. Acima de tudo é muito divertido. Nós divertimo-nos com o Duarte e Marta, e acho que às vezes, quando dialogamos, já entramos numa ou outra personagem. Do tipo: «Ah, mas agora a Marta diz-lhe: ‘Duarte, vai jogar Solitário!’» Esta é uma expressão que a Marta usa quando quer «calar» o Duarte.

As ilustrações (de Zé Nova e Ana Freitas) são bastante cativantes. Que tipo de trabalho foi feito para se chegar a este resultado?
JV: Inicialmente foi muito discutido o tipo de ilustração mais adequada, com testes a vários desenhadores. Creio que o Zé Nova e a Ana Freitas interpretaram muito bem a intenção dos autores do texto. Damos sempre indicações muito específicas sobre as ilustrações a produzir. Se estamos insatisfeitos, oferecem-nos a possibilidade de solicitar retoques, aperfeiçoamentos e até alterações.
MIA: E testámos o Duarte e Marta enquanto imagem junto do nosso público alvo. Estes livros não são só escrita, são também uma expressão gráfica. Do ilustrador, da equipa de marketing da Porto Editora, das nossas editoras (Susana e Sandra). É um conjunto. O Zé Nova e a Ana Freitas estão de parabéns. Sentimo-nos muito bem interpretados, e os jovens têm sentido uma empatia pela imagem do Duarte e Marta.

O que é que vocês oferecem aos leitores que as outras colecções do género não oferecem? O que diriam a um jovem leitor para o convencer a ler um dos vossos livros?
JV: O que já atrás foi dito: estas são as histórias de mistério, intriga e acção que todos os jovens gostam de ler, mas actualizadas para o século XXI, não só no perfil das personagens como nas temáticas abordadas. Pelo menos a nossa intenção tem sido essa.
MIA: Se não acreditássemos que esta colecção traz uma mais-valia, não avançaríamos. Isto para nós também é uma aventura: encontrar os impulsos de aventura dos tempos de hoje. E conhecer por dentro uma aventura. Julgamos que a colecção fará a sua diferença no encontro com os desejos e sonhos desta geração. Hoje uma jovem leitora disse-me o seguinte sobre os livros: “Nota-se que não é de autoras inglesas e que não é preciso ser de fora para ser bom. Está complexo ao mesmo tempo que está simples. Ela [a Marta] gosta de ser rapariga mas não é pirosa.” Gostei de ouvir.

Do próximo volume há já alguma coisa que possam revelar?
JV: O próximo volume já está escrito, mas penso que só a Porto Editora poderá autorizar a divulgação de qualquer elemento sobre a história.
MIA: Há tantas solicitações e a sede de acção do Duarte e da Marta é tão grande que eles não vão parar. Os dois têm pela frente um mundo de aventuras.

(Fotos cedidas pela Porto Editora)

Entrevista a Wladimir Kaminer, autor de «Militarmusik»

Wladimir Kaminer, nascido na ex-URSS mas a viver em Berlim, é um escritor, mas é também DJ e apresentador de rádio. Os portugueses vão começar a conhecê-lo pela faceta de escritor, agora que foi lançada entre nós pela Cavalo de Ferro a divertida obra Militarmusik, onde traça um retrato impiedoso da ex-União Soviética. Kaminer esteve em Portugal a promover o romance e deu uma entrevista ao COMÉRCIO DO PORTO onde fala de si, da sua obra e, principalmente, de liberdade.
Foto de Marianne Fleitmann

Dadas as diversas actividades que exerce considera-se um escritor? O que responde quando lhe perguntam a profissão?
Em primeiro lugar, sou um leitor. Porque há cinco anos que todas as semanas leio as minhas novas histórias no meu bar habitual. Estas são publicadas em forma de livro uma vez por ano. Para além disso, trabalho semana sim semana não como DJ na «discoteca russa» (ver www.russendisko.de) – uma distracção agradável.

A obra é assumidamente autobiográfica? É que sendo o protagonista um fantástico inventor de histórias torna-se difícil discernir entre a ficção e a realidade.
Eu estava consciente de que a União Soviética dos anos 80 não seria propriamente um tema que iria interessar os leitores na Europa. Mas as minhas experiências na União Soviética, de quão rapidamente um mundo inteiro se pode afundar, tinham de ser eternizadas. Diverti-me muito a escrever este livro e, quer se acredite ou não, a realidade era ainda mais inacreditável do que nesta obra.

Em Portugal era até agora desconhecido. Isso poderá prejudicar o entendimento do livro ou este é acessível a todos?
As pessoas, em todas as partes do mundo, têm os mesmos medos e as mesmas esperanças. Elas procuram e não encontram nada. Riem e choram por causa disso. Porque é que haveria de ser diferente em Portugal?

Como caracteriza esta obra?
Uma pessoa não se deve limitar ao necessário, mas sim tentar guardar tudo na memória, todos os símbolos são importantes, também os do passado.

A ideia que fica é que apesar de todas as restrições os jovens da União Soviética tinham imaginação suficiente para levar uma vida divertida. Era assim?
Como em todo o lado! Como no Brasil, na China ou em África. Isso admira-o?

Qual é o seu sentimento em relação à actual Rússia e à antiga União Soviética?
A Rússia actual é um país completamente diferente, é muito mais aborrecida do que na altura da União Soviética, porque se sabe praticamente tudo que vai acontecer. Hoje em dia, acho a União Europeia muito mais interessante. Ninguém sabe como esta Europa se vai realizar no futuro.

Retrata a história do seu país com ironia e crítica. É uma forma de mostrar a sua superioridade intelectual em relação ao regime da ex-URSS?
Não a minha, mas a de um indivíduo que é sempre mais esperto do que o Estado, e assim deve ser.

Pretende regressar ao seu país ou está definitivamente estabelecido na Alemanha?
Eu sou uma pessoa livre e posso ir a todo o lado. Mas não se pode falar em voltar, porque não cresci na Rússia de hoje. Seria como se quisesse voltar à própria infância, e isso não é possível. E mesmo se fosse possível, sinceramente, não me apetecia. No fundo, qualquer mudança é melhor do que a estagnação.

Quais as suas ambições como escritor?
Comunicar com pessoas sobre um tema que nos interessa.

O seu «eu» está muito presente na sua obra. Não pensa escrever um romance na terceira pessoa, uma ficção total, sem intenções autobiográficas?
O romance como forma já é uma falsificação, ainda por cima na terceira pessoa… para que é que isso serve?

Quais são as suas referências literárias?
Todos os autores que têm alguma coisa para dizer. Os outros nem por isso.

Tem outras ambições a nível artístico? Quais?
Eu não tenho objectivos artísticos nenhuns, todos os meus objectivos encontram-se no âmbito da realidade.

Como convenceria alguém a ler Militarmusik?
Não ia fazer isso. Vivemos num mundo livre, ou não?

PERFIL
Wladimir Kaminer nasceu em Moscovo, em 1967, portanto na agora extinta União Soviética.
Em 1990, com a abertura vivida a Leste, mudou-se para Berlim, onde hoje vive com a mulher e dois filhos.
Em finais de 2000 publicou o seu primeiro livro Russendisko, preenchido com histórias reais e fictícias relacionadas com a discoteca que possui em Berlim. Actualmente é DJ nessa discoteca (vocacionada para russos e outras pessoas do Leste europeu) e apresenta um programa numa rádio alemã.
Kaminer tornou-se num opinion-maker respeitado no meio cultural e literário alemão, posição sustentada na sua capacidade de comunicar e num humor corrosivo. Militarmusik, a sua estreia em Portugal, foi o segundo livro que escreveu.

(Entrevista realizada em 2003)

«Caligrafia dos Sonhos», de Juan Marsé, chega a 21 de Abril

A Dom Quixote lança a 21 de Abril Caligrafia dos Sonhos, romance de Juan Marsé que tem o prefácio assinado por António Lobo Antunes. Nesse mesmo dia sai O Testamento Final da Bíblia Sagrada, de James Frey. Mas antes, a 14 de Abril, a editora prossegue a edição das obras de John le Carré, desta vez com Um Espião Perfeito.

Caligrafia dos Sonhos – Juan Marsé
«Em meados dos anos quarenta, Ringo é um rapazinho de quinze anos que passa as horas mortas no bar da senhora Paquita, movendo os dedos sobre a mesa, como se praticasse as lições de piano que a família já não lhe pode pagar. Nessa taberna do bairro de Gracia, o miúdo é testemunha da história de amor de Vicky Mir e do senhor Alonso: ela, uma mulher entrada em anos e abundante de carnes, massagista de profissão, ingénua e apaixonadiça; ele, um cinquentão garboso que acabou por se instalar em sua casa. Ali vivem, junto de Violeta, a filha da senhora Mir, até que sucede algo inesperado: um domingo à tarde, Vicky deita-se nas linhas mortas de um elétrico tentando um suicídio impossível e patético, e o senhor Alonso desaparece para não voltar.»

O Testamento Final da Bíblia Sagrada – James Frey
O que faria se descobrisse que o Messias estava vivo? A viver em Nova Iorque. Se o encontrasse acreditaria n’Ele?
James Frey não é como os outros escritores. Já foi chamado de mentiroso, vigarista, burlão. Já foi chamado de salvador, revolucionário, génio. Devido às suas polémicas, já foi processado por leitores, abandonado por editoras, repreendido na televisão e condenado pelos media. Já foi forçado a exilar-se e a esconder-se. Mas ele é também um autêntico fenómeno editorial, publicado em trinta e nove línguas e adorado pelos seus leitores. E o que assusta verdadeiramente as pessoas é o facto de ele brincar com a verdade; essa linha ténue entre facto e ficção.
Esta é a sua obra mais controversa e será adaptada ao cinema.»

Um Espião Perfeito – John le Carré
«“Magnus Pym”, explicou um dia John le Carré, “é o arquétipo do agente duplo que existe em cada um de nós.” E é bem provável que esta seja, de facto, a chave para a compreensão de Um Espião Perfeito, unanimemente reconhecido pela crítica como a mais importante e a mais autobiográfica das obras do autor.
Publicado em 1986, Um Espião Perfeito rapidamente foi aclamado como um livro superior e tornou-se um imenso sucesso em todos os países onde foi editado.»

Já nas livrarias «A Grande Arte» de Rubem Fonseca

A Sextante acabou de lançar A Grande Arte, do escritor brasileiro Rubem Fonseca, numa edição que tem um prefácio do secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, e um posfácio do vencedor do prémio Nobel da Literatura, Mario Vargas Llosa. Trata-se, segundo a editora, de um romance sobre “o crime nas altas esferas sociais e no bas-fond do Brasil, assassinos profissionais, um advogado vingador e a “grande arte” de manejar uma arma branca.
Rubem Fonseca, que em 2003 venceu o Prémio Camões, já viu editados pela Sextante Editora os romances O seminarista e Bufo & Spallanzani, este último finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas.

Sobre o livro: «O assassinato de duas prostitutas, no Rio de Janeiro, que, de início, parece obra de um maníaco sexual, abre uma caixa de Pandora de onde vão brotando, no decorrer de uma ação trepidante, as complexas ramificações de um tenebroso sindicato do crime. A história passa-se em boîtes e bares sórdidos, em sumptuosas mansões do Rio, em vilarejos da fronteira entre a Bolívia e o Brasil, onde reinam a cocaína e o crime, bem como na interminável viagem de um comboio que percorre metade do Brasil com couchettes que rangem sob o peso de casais fazendo sexo.»
Do posfácio de Mario Vargas Llosa

«É necessário que A Grande Arte seja lido e relido, aberto em qualquer página a meio da noite, fechado com irritação ou anotado nas margens, como um código.
[…]
Enfim, A Grande Arte é um livro quase perfeito. O seu único defeito é ter um último capítulo. Um livro assim não pode terminar, bem vistas as coisas.»
Do prefácio de Francisco José Viegas

Entrevista a valter hugo mãe – Autor de «o nosso reino»

valter hugo mãe, poeta, editor e agora romancista (esta entrevista foi inicialmente publicada em O Comércio do Porto a 5 de Dezembro de 2004), lançou recentemente a sua estreia na prosa, o nosso reino (Temas e Debates) e quase em simultâneo deixou as quasi, editora famalicense da qual era sócio.
Cedências editoriais a uma linha mais “popularista” levaram-no a procurar novos rumos e agora não disfarça o entusiasmo pela prosa, depois de anos dedicados em exclusivo à poesia. Para trás fica a sua ligação a uma editora que apostou na qualidade e cresceu longe das grandes cidades.
O nosso reino, que roça o surrealismo, leva-nos a um mundo rural onde a religião e Deus impõem a sua força e poder a um crédulo miúdo de oito anos
(Nota: o nosso reino foi reeditado em 2011 pela Alfaguara, sendo assim a sua terceira edição em três editoras distintas – antes tinha saído na Temas & Debate e na QuidNovi.)

Neste seu primeiro romance a morte e a religião são omnipresentes. Porquê?
Fiz essa opção por natureza. Quase tudo no livro foi encontrado por acaso. Comecei a escrever o livro de surpresa, não estava sequer à espera de escrever um romance. É um bocado o que se passou sempre com os meus livros de poesia. De repente estava a escrever um livro de poesia e não apenas um poema. Desta vez eu tinha uma frase – provavelmente estava anotada para vir a ser um verso –, a primeira do livro, (“o homem mais triste do mundo”) e que me deu a ideia de procurar esse indivíduo, de saber quem seria. E as coisas surgiram um bocado umas a partir das outras e sem dar muito conta disso estava dentro de um ambiente religioso, a fazer considerações sobre as questões da fé e do transcendente, sobretudo do esperar alguma coisa de que não existe prova, de que não existe uma garantia. E o mundo da religião é também feito para a crença no impossível, no inexistente. O livro é todo à volta do que há e do que não há e do que se pensa ou do que se quer que exista.

Tem uma imagem da Igreja tenebrosa e obscura?
Tenho tendência para acreditar que existe alguma coisa. A história do Cristo é uma história tão incrível, tudo o que a Bíblia conta é tão incrível, que tenho tendência para acreditar que seria impossível ser inventada. A realidade ultrapassa sempre a ficção. Tenho tendência para acreditar que aquilo que ali está em boa parte é verdade. Por isso tenho uma relação, sem dúvida, com questões religiosas de alguém que tem a tendência para acreditar. Mas tenho ao mesmo tempo alguma dificuldade em lidar com o sistema operativo da religião. Não tenho reconhecido em muitos padres uma autoridade moral e espiritual que me convença. Dos poucos padres com os quais estive mais perto todos me frustaram, ou porque entram em actividades políticas e impingem às pessoas programas políticos, ou porque como pessoas são seres intratáveis, antipáticos. Há sempre qualquer coisa… Até hoje não conheci um padre que me convencesse. Para ser um líder espiritual precisa de ser alguém profundamente inteligente, porque um indivíduo que está em cima de um púlpito a tentar dirigir a vida dos outros tem de saber muito bem o que é bom para os outros e por isso qualquer opção ou conselho que esteja a dar tem de ser muito bem fundamentado. Infelizmente, acho que a inteligência não tem sido muito procurada quando se abrem concursos para padres.

Noto alguma desilusão não com a Igreja em si, mas com quem a habita.
Sim, um bocado como se passa no romance. O padre do romance diz que a igreja é muito antiga e muito grande e é impossível conhecer todos os padres que a habitam. Também tenho certas dúvidas sobre a pertinência de haver uma hierarquia na Igreja. O papa, depois os bispos, os cardeais, uns mandam nos outros, até ao soldado raso, que acaba por mandar na paróquia. Parece-me que seria mais lógico que a igreja funcionasse como um clube de amigos, sistema integrado em que toda a gente pudesse participar activamente no que é dito e decidido dentro daquela casa. E se o sistema já de si pode ser duvidoso, se for posto em prática por pessoas que, como todos nós, têm problemas e carências a todos os níveis, leva-me a acreditar que a melhor forma de ser religioso ou ter fé em alguma coisa é ficarmos sossegadinhos com as nossas convicções e fazer as leituras que devemos fazer.

O temor que o protagonista tem em relação ao padre da aldeia é fruto de experiência pessoal?
Não. Tentei fazer com que o romance não tenha absolutamente nada de autobiográfico. Claro que fui eu que o escrevi, há-de haver coisas que são minhas, coincidem com ideias minhas. Imaginemos se eu tivesse tido uma tia que é boa em matemática, como acontece com a tia do miúdo no romance, em vez da tia do miúdo do romance ser boa em matemática era boa a geografia. Tentei fazer com que as coisas não coincidissem em absoluto com nada que se passou comigo. Há uma coisa ou outra. Em relação ao padre, nunca me apareceu nenhum a bater. Quando era miúdo – costumava ir à missa com os meus pais – nunca nenhum padre me prestou alguma atenção. Ou seja, os padres também têm a tendência, pelo menos os que eu vi, para ver as crianças e os miúdos como uma espécie de aborrecimento, de barulho de fundo. “Tens de te portar bem na igreja, não faças barulho.” Não é preciso pôr os miúdos a cantar e dançar, mas os padres deviam suscitar os miúdos para a conversa, porque muitas vezes estão a esconder coisas, a passar por coisas e a passar por dúvidas e o padre poderia ser a melhor pessoa para impedir que se agrave. Nunca tive problemas, mas também nunca senti acompanhamento por padre nenhum. Das poucas vezes que me confessei quando era miúdo senti que estava a fazê-lo para uma máquina. Não estabeleci diálogo nenhum. Eu dizia que tinha chamado nomes ao meu irmão e ele dizia “reza três avé-marias”. Era quase como pôr uma moeda numa máquina e da máquina tirava um ovinho com a sina ou coisa do estilo.

Será por isso que as pessoas estão mais afastadas da Igreja, enquanto edifício?
Sem dúvida. As pessoas não conseguem manter fidelidade a uma parede e a igreja neste momento é uma parede, pelo facto de não existir diálogo, pelo facto da eucaristia ser, sobretudo, um evento quase espectacular, onde o público não intervém, fica passivo a ouvir as maiores barbaridades que os padres dizem nos sermões. Lembro-me de ter ido a um casamento em que um padre dizia que não havia problema nenhum em a mulher obedecer piamente ao homem. Se ela gostasse muito dele e ele gostasse muito dela, porque não haveria de obedecer ao homem? Essas coisas fazem-me mal. Um senhor, de cinquenta e tal anos que nem sequer é casado, ou pelo menos não devia, estar ali tão sapiente sobre o que o homem e uma mulher devem fazer numa relação… Estas posturas são cada vez mais obsoletas. Não é que algum dia tenham sido modernas, o que está errado, está errado. É tão evidente que existem essas deficiências de postura que as pessoas acabam por se fartar. As mulheres hoje em dia já pensam, acho que a Igreja não acredita muito nisso.

“Os líricos românticos acham que os artistas têm de ter uma panca”

O romance decorre antes do 25 de Abril, mas também poderia ser deslocado para a actualidade de alguns meios rurais.
No meu livro tudo é muito exagerado porque é uma criança que está a contá-lo.
Nunca devemos acreditar piamente no que o narrador está a dizer. Eu, enquanto leitor deste livro, duvido sempre das intenções do miúdo. Tive sempre alguma ligação com a questão de África (nasci em Angola) e ao longo da minha vida fui conhecendo algumas pessoas que estiveram em África. Como acontece em todas as guerras e conflitos, existe um enorme mito do como foi e como era e muitas vezes as pessoas tornavam as coisas mais agressivas. Contavam-me coisas pirotécnicas, absolutamente absurdas, que só por estupidez é que achariam que os outros iam acreditar.

Recorreu a uma criança para poder escrever exageros mais livremente?
A criança tem várias utilizações. O livro, todo ele, é uma interpelação à figura de Deus, é uma espécie de encosto de Deus à parede, a ver se ele responde. Acho que a questão de as crianças serem puras e ingénuas e merecerem toda a atenção, faz com que esse pedido desenfreado por uma manifestação divina seja mais eloquente e mais passível de ser atendido. Como queria extrapolar, exagerar e criar universos fantásticos, a ingenuidade de um miúdo é passível de me dar até um surrealismo, que é uma das possibilidades de leitura do romance.

Foi-lhe difícil meter-se dentro da mente de uma criança?
Não. Tive uma infância muito interessante e especial. O mais interessante era a minha própria cabeça, era muito curioso e tinha a mania de ouvir as conversas das outras pessoas. A minha curiosidade era de ouvir as coisas e fazer as lógicas e as ligações. Era um miúdo muito convencido com as minhas verdades. O que fiz no fundo foi transformar esse miúdo e fazê-lo sofrer o que eu sofria com 4 ou 5 anos – era de uma credibilidade incrível.

Nunca pensou em aproveitar esses pensamentos de criança para fazer livros infantis?
Toda a gente me diz isso. Este livro tem duas coisas: está tão ligado aos livros para miúdos como a dada altura poderá estar ligado aos livros fantásticos e filmes de terror. Eu vou passar pelas duas coisas. Já tenho estado a escrever outras coisas e tenho intenção de escrever puramente aventura, infanto-juvenil, terror. Algumas das coisas que estou a escrever já estão a aflorar e explorar esses universos. Sempre fui fascinado pela fantasia em todos os seus sentidos, desde os filmes de animação de criação de mundos, seres espectaculares, bichos nas profundezas do mar, ou no interior da Terra. Sempre adorei esses filmes de animação com a fantasia levada ao extremo do gore. O que me decidi finalmente foi começar a contar histórias.

Porque escreve em minúsculas?
Escrevo assim porque num texto todas as palavras têm a mesma dignidade, estão todas em pé de igualdade e depois o leitor é que lhes confere importância.

É dos poucos autores portugueses com página na net.
Tenho um site que é feito por um amigo. As pessoas têm o preconceito que o escritor tem de ser muito discretozinho, não aparecer, as entrevistas têm de ser muito sérias. O escritor tem de ser um bicho raro. É um preconceito dos líricos românticos que acham que a malta das artes e os artistas têm de ter uma panca muito grande.

“São as raparigas cor-de-rosa que estão a vender livros e isso assusta-me”

Não acha que há lançamentos literários a mais em Portugal?
Os livros nunca são demais se forem bons.

Ou há poucos leitores no nosso país?…
Os leitores é uma coisa que se faz. Se houver livros as pessoas acabam por aparecer. A questão é que se edita muito lixo, se calhar por causa da necessidade de popularizar um bocado a coisa. O problema é que as pessoas não estão a comprar os melhores livros. É uma pena que o José Luís Peixoto ainda não tenha entrado nos hipermercados. Como é que ele ainda não consegue estar ao lado dos livros da Margarida Rebelo Pinto? Por mais popular que ele seja (e é), a Margarida Rebelo Pinto, a Susanna Tamaro, e todas estas raparigas cor-de-rosa pertencem a um mundo muito mais popular. E são elas que estão a vender livros, a ganhar dinheiro, a ficar famosas e isso assusta-me um bocado. A Margarida Rebelo Pinto no Sei Lá tem uma personagem que a dada altura parece muito importante e depois desaparece aí na página 40. Esqueceu-se da personagem… Ela que seja feliz, mas preferia que o José Luís Peixoto vendesse 200 mil exemplares e que a Margarida vendesse três mil.

Mas a literatura light não pode servir para habituar as pessoas a ler?
Pode. Algumas daí passam para outro lado, têm um prazer enorme a ler e querem mais e vão buscar o… Paulo Coelho (sorriso). Pode ser que depois consigam abrir um bocado os olhos. Algumas já lêem o Equador (de Miguel Sousa Tavares). Mas depois já podem chegar a uma coisa… melhor.

“A poesia é uma coisa para meia dúzia de freaks”

Agora que experimentou a prosa, a poesia foi posta de parte?
Escrevo sempre poesia e vou ser sempre poeta, o que acontece é que já tenho nove livros de poesia, já errei em alguns. Os meus primeiros livros eram muito maus, preferia não os ter escrito. De momento escrevo um poema e deixo-o de lado, fascina-me a prosa. A poesia é quase um exercício de abandonar as pessoas, muito autista. Na prosa, estou a fazer o contrário, chamo as pessoas para entrarem nos livros, sinto-me mais acompanhado e comunicativo.

Continua a escrever poesia?
Vou continuar a escrever mas decidi que em 2005 não publico poesia. Tenho publicado muita poesia e acho que o mundo tão cedo não precisa de poesia minha.

Não se sente frustrado por só agora muita gente passar a reparar em si?
Sim, mas eu não estava iludido. A poesia é realmente uma coisa para meia dúzia de freaks, para gente muito estranha. Não é violento que as pessoas agora me conheçam pela prosa.

Está satisfeito com este romance?
O facto de ter feito uns livros de poesia ao princípio mauzinhos permitiu-me agora fazer um romance do qual não me vou envergonhar. As pessoas têm dito que é excepcional, têm adorado. Acho também que o que acontece neste livro, e não acontecia na poesia, é que as minhas intenções são mais claras. A poesia é mais abstracta, mais resistente ao leitor e muita gente está fundamentalmente a entender o que quero, o que digo. Os meus amigos que compravam os meus livros por simpatia agora dizem: “Então o valter afinal é isto, então como escritor diz estas coisas, já entendo.” O livro veio fazer uma luz sobre as minhas intenções literárias.

“As quasi complicaram-se, isso é verdade, é um projecto cada vez mais complexo”

Porque resolveu editar “o nosso reino” na Temas & Debates e não na editora da qual era sócio na altura, as edições quasi?
Porque é muito confrangedor editar nas quasi um livro meu e eventualmente ser colocado numa posição em que o tenho de promover. O que acontecia é que os livros que editei na quasi não os promovia. Os livros seguiam para os críticos no meio dos outros todos e depois era capaz de entrar em contacto com um ou outro crítico para falar de um ou outro livro mas nunca falaria do meu. Era muito interessante: podia fazer as capas, podia fazer o livro no dia em que me apetecesse, a tipografia por consideração à minha pessoa imprimia o livro rapidíssimo. Era tudo muito bonito, mas efectivamente era muito mau em termos de promoção e divulgação. Isto também passa pelo facto de ter uma consideração muito grande pela colecção da Temas e Debates, a Lusografias – gosto muito do trabalho da Maria do Rosário Pereira. E a prova de que o efeito tem sido outro é que o livro tem chegado a muitos mais lugares, a muito mais gente, porque ainda existe a Ana Pereirinha que faz os contactos promocionais todos e diz a toda a gente que é “muito bom, muito bom, muito bom” e as pessoas ficam convencidas de que pelo menos vale a pena ir ver o que é.

Falou nas quasi. Há dias soube-se da sua saída como sócio da editora. A que se deveu essa partida?
Se calhar um bocado por gostar de estrear. Estreei como editor, estive cinco anos como editor e agora vou correr riscos. Quer dizer… nas quasi corremos riscos. Montar uma editora em Famalicão, editar montanhas de poetas, ser apreciado por uns e odiado por outros, mexer com a consciência das pessoas foi um risco. Mas bem sucedido, porque as quasi em termos comerciais se viabilizaram. Em última análise é a prova que o projecto é válido. No que respeita aos cinco anos que lá passei valeu mesmo a pena. Neste momento gostava de me dedicar mais à escrita. Pode surgir uma ou outra proposta para alguma ligação para outras editoras. Pode ser. Não descarto a hipótese de continuar ligado ao mundo da edição, que era o meu trabalho na quasi, mas nunca a nível de editor/empresário. Nas quasi tinha de reunir com contabilistas, bancos, e aturar credores e fornecedores e pedir dinheiro aos devedores. Torna-se muito complicado e passou o meu tempo ali e quero começar de novo.

Mas acha que as quasi cresceram de mais e se desvirtuaram? Há algum descontentamento?
Não, não. As quasi complicaram-se, isso é verdade, é um projecto cada vez mais complexo. Não se desvirtuou, foi-se adaptando. De início, editávamos alguns livros e por isso precisávamos de algum dinheiro. Passado algum tempo passámos a editar muitos livros de poesia e passámos a precisar de muito dinheiro e isso fez com que em termos de critérios tenhamos sentido a necessidade de abrir um pouco mais os nossos horizontes, os nossos leques de autores e tudo isso. Tentámos sempre não fazer grandes concessões em relação à qualidade mas por vezes tivemos a necessidade de entrar em domínios mais populares, de mais fácil acesso ao público. E isso, na minha perspectiva, foi sempre motivado pela vontade que eu tinha de investir em gente que eu sabia que não ia vender muito. Fico um bocado curioso por saber o que o Jorge (Reis-Sá) vai fazer agora, mas sei que no imediato vai seguir o que estava a ser feito. Mas depois… será a imagem dele que ficará. A minha tem sobretudo a ver com estes cinco anos.

Acha que vai ser uma editora mais comercial?
…é possível.

Foi por isso que saiu?
Eu aqui cheio de rodeios e rodeios… Não sei, não sei. Pode ficar mais comercial até porque a crise tem obrigado a que todas as editoras tenham uma postura mais aberta e popular. E as quasi se quiserem subsistir com alguma simpatia e com ambiente agradável provavelmente vão ter de continuar com uma política, não digo popularista, mas com momentos espontâneos de popularidade.

Achava que o ideal era encerrar um ciclo e fechar a editora?
Não! Mesmo que na pior das hipóteses o Jorge arrase com a editora e passe a editar as coisas mais horríveis, o meu nome esteve ali apenas nos primeiros cinco anos, o resto não teve nada a ver comigo. Espero que ele não faça isso, sei que ele não vai fazer, tenho confiança, vai correr tudo bem. Inclusive é possível que participe numa ou outra coisa das quasi. Mas sempre muito como outsider. Faz-me um bocado de aflição as pessoas que ficam ligadas às coisas que criaram e que depois não gostam que elas mudem. Não me importo nada. Se as quasi virarem uma editora de livros pornográficos, óptimo. Se calhar até compro alguns ou espero que o Jorge me mande alguns (risos).

“Tivemos facilidade. Achavam todos muito engraçado uma editora em Famalicão”

As quasi são a prova de que numa terra como Famalicão é possível criar um projecto rentável na área cultural?
As quasi são a prova de que se as pessoas tabelarem por cima, lidarem com a qualidade, com aquilo que é reconhecido (seja no norte, sul, este ou oeste), o projecto diz respeito a toda a gente, diz respeito ao país. As quasi tornaram-se numa editora nacional porque os livros que editaram são de carácter nacional. Quando eu entrei (há cinco anos) e profissionalizámos a editora e criámos a empresa foi ponto assente que as quasi estariam em Famalicão, mas seriam de Portugal. Então, com tudo quanto poderia passar pela pieguice do local, do pedido do amigo da porta do lado, nós tentámos ser implacáveis. Se for bom entras se não for… nem que seja a vizinha da porta de cima, nem que apareça de soutien à janela. Acho que as quasi servem de prova para esse tipo de esforço do que numa determinada localidade se pode fazer para desenvolver um projecto que diga respeito a toda a gente. E por isso de início começámos logo a seduzir o António Ramos Rosa, o Eugénio Lisboa, os herdeiros do José Régio e o José Luís Peixoto.

Sentiram mais dificuldades por serem da periferia?
Tivemos facilidade, porque chegávamos a qualquer lado e diziam: “Ahh, aqueles rapazes tão simpáticos de Famalicão. Imaginem uma editora em Famalicão’. Achavam todos muito engraçado. E de engraçado em engraçado arranjávamos tudo. Depois editávamos as pessoas de quem gostávamos e essa energia de aparecermos perante alguém como admiradores passava imediatamente. E desde seduzir do Mário Soares ao Eduardo Prado Coelho foi muito fácil. Por ser de Famalicão acharam que era um projecto descentralizador e quiseram participar. Acho que se calhar o segredo neste momento está em sedear uma coisa qualquer em Freixo-de-Espada-à-Cinta e falar com o Prado Coelho (risos).

Quais foram os momentos mais marcantes do tempo que passou nas quasi?
A 11ª edição de Poemas de Deus e do Diabo, do José Régio, que estava esgotado há vinte anos e que só nós pudemos reeditar. Fiquei deslumbrado. O termos inventado o livro de letras do Caetano Veloso, que só passado um ano saiu no Brasil. Um livro que já tinha sido pedido por editoras de todo o mundo. Nós perguntámos e ele disse que sim e perguntámos outra vez e ele disse que sim. Editámos a Adriana Calcanhotto, um livro que ainda não existe no Brasil. Quando fizemos uma tournée com o Mário Soares e ele disponibilizou-se para apresentar a obra em Famalicão, Porto e Lisboa. Aceitou que em Lisboa fosse o Freitas do Amaral a apresentar o livro. Fomos jantar lá com o Freitas do Amaral, que foi a primeira vez que entrou na casa dele. Foi um momento histórico. Editámos um livro do Mark Kozelek (n.d.r. líder do grupo Red House Painters), que é o único a nível mundial. Os americanos e ingleses nem conseguem acreditar que ele tem um livro editado em Portugal.

(Entrevista realizada em Dezembro de 2004)

Entrevista a Pablo de Santis – Autor de «O Calígrafo de Voltaire»

Pablo de Santis apresentou em 2005 em Portugal O Calígrafo de Voltaire (Temas & Debates), um romance que mistura história e ficção e nos leva à perturbante época em que religiosos fervorosos tentaram acabar com o Iluminismo.

Fez muitos estudos históricos para poder escrever O Calígrafo de Voltaire?
A maior parte é imaginação, se bem que conheço um pouco da época devido a leituras prévias. A verdade é que li mais sobre a Revolução Francesa do que sobre Voltaire. É um período incrível porque os principais direitos e organizações das sociedades modernas provêm de uma época e de um grupo de homens quase psicóticos, assassinos impiedosos. Parece-me incrível que os nossos direitos venham do que ocorreu em França no final do século XVIII.

Tanto O Calígrafo de Voltaire como A Tradução, anteriormente editado em Portugal (ASA), têm como pano de fundo a escrita. Isso acontece por acaso ou tem mesmo uma preferência por esse tema?
É uma presença forte, a da escrita, em outros livros meus. Também acontece num romance policial que se chama Filosofia e Letras, que decorre num prédio abandonado na Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires, onde críticos literários procuram a obra de um escritor misteriosamente desaparecido. É um tema um pouco recorrente.
Mas tenho outros romances com outros temas. Tenho um romance com neurologistas e um novo sobre arquitectura.

São mundos bastante específicos que devem requerer muito estudo antes da elaboração do romance.
Só em algumas coisas. São sempre romances de fantasia, não são realistas. De forma geral, há uma grande distância com uma visão realista do mundo.

Mas em O Calígrafo de Voltaire pegou numa personagem histórica conhecida e criou uma história à volta dela. Porque escolheu Voltaire?
Primeiro, devido à distância temporal e também à grande distância entre a Argentina e esse mundo. E Voltaire é uma personalidade à volta da qual havia muitas lendas. E gostava da imagem desta personagem que exercia a sua influência à distância. Ele estava em casa, na fronteira de França com a Suíça, sempre preparado para escapar em caso de perigo. Mas, se calhar, o mais pessoal é o tema da caligrafia, que me interessava. O personagem calígrafo, que produzia tintas invisíveis venenosas.
Quando estudava caligrafia, há mais de 30 anos, já era uma matéria algo esquecida, anacrónica, sem sentido…

Na altura já gostava de caligrafia?
Não. Tenho uma péssima letra, incompreensível. Mas atraiu-me sempre o mundo das penas, das tintas. Ganhei muita experiência numa revista de banda desenhada e estive em contacto com muitos desenhadores. E nessa altura faziam-se as letras à mão.

Não se incomoda por inventar factos à volta de factores verdadeiros?
Não, porque não é um romance histórico. É evidente que se aproveita de feitos reais. Acho que nas primeiras páginas de um livro estão sempre as regras do jogo, o que vai ser a narração. Acho que é evidente desde o começo que se trata de fantasia.

É um amante de literatura fantástica e de ficção científica (FC). Nunca se sentiu tentado a escrever nesse registo?
Há alguns elementos de FC nos romances. A FC na Argentina está muito ligada à literatura fantástica. É uma espécie de zona nebulosa, não é como na literatura anglo-saxónica onde é um género à parte. É uma FC mais de sábios loucos encerrados numa casa, do que de fatos espaciais.

Ficou satisfeito com este romance?
Sim, não faria mudanças. Os meus livros têm algo em comum que é o enredo muito organizado e uma presença do género policial na forma de organizar o argumento.

Quando começa a escrever um livro já o tem todo estruturado, já sabe por onde o leva?
Faço um esquema bastante completo antes de começar, com os principais acontecimentos da acção. Para mim ao escrever há três películas: a história, a lógica (que tenha sentido, que se faça autónoma e não haja contradições) e a escrita em si, o cuidado com as palavras. Para mim, a escrita sobrepõe-se entre estes estados.

Durante o processo de escrita não lhe ocorre que poderia seguir por outro que caminho que não o que já havia traçado?
Pensa-se sempre se não se deveria fazer outra coisa. Em geral temos sempre uma visão do romance que não se cumpre.

Foi jornalista numa revista pouco credível.
Sim, era uma revista dedicada aos escândalos e ao oculto. Mas serviu-me, principalmente, para ganhar velocidade na escrita. E o jornalismo tem sempre algo de excitante, porque todos os dias se conhece gente nova.

O livro

O coração nas mãos…

Pablo de Santis apresenta um romance de cariz histórico que mistura com habilidade factos reais e fantasia. O autor argentino pegou num tema e numa personalidade europeias (o Iluminismo e Voltaire) e elaborou um romance com o seu quê de policial, assim como recheado de momentos macabros. Logo de início, aliás – a história começa com a chegada de um foragido a um porto argentino. No meio da bagagem carrega um frasco de vidro com o coração de Voltaire.
Começa o protagonista (o calígrafo Dalessius que trabalhou para Voltaire) a recordar como chegou àquele porto. Os trabalhos, além dos da escrita, que executou para o patrão, em defesa do Iluminismo.
Voltaire, comandando à distância, mandou-o investigar o plano de um grupo de fanáticos religiosos que pretendiam “apagar a Luz” em prol da recuperação de fiéis para a Igreja. Na execução da sua missão, Dalessius constata o poder da escrita, tanto através do que fica no papel, como dos métodos utilizados para tal, desde tinta invisíveis a venenosas. Santis leva-nos por um mundo obscuro, através da sua escrita precisa mas imaginativa. Num mundo de loucos, Santis desenvolveu um romance pleno de mistério e obscurantismo.

(Entrevista realizada em 2005)

Entrevista a Alberto S. Santos – Autor de «A Profecia de Istambul» (Porto Editora)

Alberto S. Santos tinha um desafio enorme pela sua frente. Depois do grande sucesso do seu romance de estreia, A Escrava de Córdova, insistiu no romance histórico e apresentou A Profecia de Istambul (ler aqui a crítica). A aposta está ganha e em entrevista ao Porta-Livros falou do seu livro, o que o inspirou a escrevê-lo e, entre outras coisas, como lida com as suas duas carreiras paralelas, a de escritor e a de autarca, pois é desde há dez anos presidente da Câmara de Penafiel.

Como lhe surgiu a ideia para este romance?
Surgiu da forma mais imprevisível. Fui ao Luxemburgo. De cada vez que vou a uma cidade é sagrado visitar as livrarias. Na cidade do Luxemburgo de repente dei com uma investigação de um historiador francês sobre a vida de cidadãos do século XVI que viveram o Mediterrâneo e todas as peripécias do Mediterrâneo, sobretudo os processos psicológicos a que muitos foram sujeitos nas suas vivências, nomeadamente no que toca a cativos e renegados. Achei que era uma temática muito interessante que ainda não tinha visto tratada em Portugal com muita intensidade. Achei fascinante e que podia dar uma boa história e a partir daí motivei-me a investigar mais sobre o tema até construir um conjunto de personagens, umas fictícias outras reais, e seguir por aí adiante.

O romance dá exemplo de harmonia entre povos e religiões como acontece em Argel – é uma espécie de recado ou desejo para a actualidade?
No fundo é o meu subconsciente a alargar-se através daquilo que vou escrevendo. O meu primeiro romance (A Escrava de Córdova) também toca essa temática do ecumenismo das religiões, da tolerância inter-religiosa e sobretudo procurava evidenciar que ao longo dos séculos, as religiões, que deviam ser as primeiras propagadoras do entendimento entre os povos, normalmente são o contrário. Têm sido, em muitos momentos, instigadoras da desavença entre os povos. Acho que ao final deste tempo todo o mundo e a humanidade deviam parar um pouco para pensar. Aliás, vejo agora na televisão estas manifestações que estão a ocorrer nos países islâmicos e muitas vezes penso nisso: que talvez seja o momento de a humanidade pensar e reposicionar a sua história para o futuro, procurando retirar das religiões não as questões no sentido perverso que a história no passado nos indica, mas valores mais consentâneos com aquilo que elas próprias defendem: entendimentos, tolerância e sobretudo respeito pela condição humana.

Um romance histórico requer muito estudo – que tipo de investigação levou a cabo?
Para este livro em concreto o grosso do trabalho foi feito pela minha investigação, parte dela em documentos da época, nomeadamente processos da inquisição sobre pessoas que renegaram a fé e estiveram no Norte de África e depois foram apanhados outra vez por aqui, relatos de pessoas que viveram nessa época e escreveram na primeira pessoa no século XVI e XVII e livros de história e histórias biográficas. Tive apenas uma conversa com um professor de história de uma universidade que mais do que tudo me indicou bibliografia.

Na minha opinião, por vezes o romance tem informação histórica em excesso prejudicando com detalhes o desenvolvimento do enredo. Não pensa que poderia ter sido mais moderado?
Uma das vantagens que pode ter o romance histórico é permitir ao leitor que, além de se poder vincular e estar perto de tudo o que é a vida das personagens, consiga entrar dentro de uma época. É a parte mais difícil, claramente, para um narrador, pois implica o domínio de muitas coisas, nomeadamente da mentalidade da época. Mas quando estou a escrever aceito o risco de parar mais tempo na descrição de pequenos pormenores que podem não ter muito interesse para a economia da história e para a parte romanesca da narrativa mas ajudam a contextualizar melhor quer as personagens quer os próprios leitores no espaço em que decorre. Isso pode ter um preço, o da dinâmica da narrativa, mas eu procuro esse equilíbrio.

Cria alguma espécie de laço afectivo com as personagens? Elas conseguem surpreendê-lo?
Laços de afecto e desafecto, quer com elas quer com aquelas que vou estudando o seu percurso de vida. Há aqui uma personagem que procurei seguir com o máximo rigor neste livro, que é o Fernando Del Pozo. É uma personagem real e o seu percurso de vida coincide praticamente com aquilo que aqui é narrado. Começou por ser uma personagem principal, a minha primeira ambição foi contar a sua história, mas depois quando a história chegou a Argel percebi que aquilo que as próprias personagens estavam a viver me impelia enquanto narrador para contar uma outra história. Então o Del Pozo passou para personagem secundária e elas mudaram radicalmente a história.

Quando termina a escrita de um romance fica aliviado ou sente pena de deixar aquelas pessoas e aquela história?
É um misto desses dois sentimentos. Aliás, eu neste livro senti, quando estava a chegar ao fim, que tinha tema para contar mais outro tanto daquilo que tinha escrito seguindo a vida das próprias personagens por outras aventuras que achava que podia contar. Aliás, o livro termina de alguma forma rapidamente. O desenlace da história até termina com muita rapidez. Entendi que o livro devia ter aquela dimensão, devia ser contado daquela forma. Fiquei, por um lado, satisfeito por contar uma história com coerência, mas, por outro, com pena de ver que tinha ainda tantas coisas para contar.

Admite pegar em algumas dessas personagens ou dessas coisas que ficaram por contar para escrever um novo romance?
Sim. Aconteceu-me mais no primeiro livro, que termina de uma forma onde essa necessidade é muito mais evidente. Neste eu tentei fechar mais o círculo. Mas essa tentação existe. Até hoje ainda não senti necessidade de contar o seguimento dessas duas histórias. Por um lado, gostaria de o fazer, mas, por outro, acho que posso correr o risco de matar a magia das pessoas das histórias.

Notou em si uma diferença do primeiro para o segundo livro, no processo de escrita?
Sim, o segundo livro foi escrito de uma forma mais fluida, mais linear e talvez mais equilibrada entre o conjunto dos capítulos e o suceder das acções. Foi menos doloroso.

Já tem algo mais manga? Vai continuar no romance histórico?
Neste momento já estou a esboçar uma outra história que não sei se será romance histórico, não sei como se poderá classificar. É uma história que vai decorrer em meados do século passado. Tem um pouco que ver com o lendário do mundo rural do norte do país.

Ficou surpreendido com o sucesso que teve com o romance de estreia?
Claramente surpreendido. Quando escrevi aquela história não foi inicialmente com a ambição de poder ser publicada, pelo menos com a força que foi. Mas nunca imaginaria que conseguisse uma editora que se interessasse com aquele entusiasmo e muito menos que ela pudesse chegar tão longe quanto chegou.

Surpreendeu-se consigo próprio?
Fiquei surpreendido com os dois livros. O segundo foi uma responsabilidade maior. Senti que os leitores iam fazer um julgamento e nessa matéria claramente que tinha essa noção. Mas quando digo que me surpreendi a mim próprio em ambos… se hoje imaginasse essa empreitada de escrever um e outro ia sofrer por antecipação porque acharia que não seria possível escrevê-lo.

É inevitável associar a sua carreira de autarca à de escritor. Há ligações entre acontecimentos do seu dia-a-dia enquanto autarca a situações, devidamente comparadas, de outras épocas? Tira ensinamentos?
É verdade, não só como autarca mas também como pessoa. O facto de estudar o passado ajuda-me a compreende melhor o presente e a estar melhor situado no tempo em que vivo. Essa é uma das vantagens, a vantagem de estudar e investigar o nosso passado comum ajuda-me a essa melhor compreensão e também me permite que através das histórias que conto os leitores possam fazer também eles esse percurso e essa análise. Podia também dizer que nas minha investigação encontro muitas vezes personagens que me ajudam a compreender muitas pessoas que conheço hoje no presente. Lembro-me que quando estudava algumas cortes, nos palácios, mesmo nos islâmicos, nomeadamente em Córdova, para a escrita do primeiro livro, havia as figuras dos bajuladores oficiais. Muitas vezes vejo pessoas que me fazem lembrá-los.

Pensa que para o seu sucesso poderá ter contribuído o facto de ser presidente de uma câmara?
Acho que não. A minha ideia é que um leitor padrão olha para um presidente de câmara e não está a vê-lo a escrever livros. Essa circunstância até podia ser mais inibidora. Com uma excepção, na zona onde resido reconheço, ao contrário do que eu imaginaria, que senti um carinho muito grande por parte das pessoas em descobrirem o que é que eu tinha escrito. Talvez de início por curiosidade e a seguir isso gerou alguma surpresa que se transformou numa pequena onda local e regional de passa palavra positivo. Até porque que a primeira história tinha alguma vinculação a zona onde resido, a parte cristã da história iniciou e terminou lá e isso ajudou muitas pessoas que ali vivem a compreender melhor parte do seu passado.

Como é que conjuga as suas duas carreiras?
Não vou negar que muita gente vem tratar de assuntos e no fim aparece com um livro para ser autografado ou para uma dedicatória e fala das impressões que foi tendo. Isso obriga-me também a fazer alguma gestão daquilo que é o meu tempo dedicado à minha profissão para que depois me permita libertar algum espaço sem comprometer o meu vínculo com a função que tenho para dedicar à promoção do livro e a escrita.

A sua ambição passa por se dedicar em exclusivo à escrita?
Neste momento dou-me bem com esta situação, mas não vou negar que gostaria de poder dedicar-me à escrita, mas também ter tempo para fazer outras coisas: participar em movimentos de cidadania, associativos, predispor-me para estar presente na sociedade e na comunidade, mas sem estes vínculos que a causa pública implica. O caminho pode ser calmamente seguido nesse sentido. Depende daquilo que eu possa fazer a seguir a este mandato – não posso fazer mais nenhum, a lei não permite – e também da reacção de acolhimento por parte dos leitores.

Esta vocação para a escrita já vem de há muitos anos ou é recente?
Se me perguntar a minha vocação para escrever… sim. Fui advogado até há dez anos e nessa função há dois momentos importantes, o momento em que se escreve e põe no papel o posicionamento da estratégia, uma petição, um requerimento, uma acção judicial, e depois há o momento do confronto verbal, da oralidade, nos tribunais. Eu sempre canalizei muito mais energia para a parte da escrita, era aquela de que eu gostava mais, jogar tudo o que sabia na parte da escrita. Sempre fui desenvolvendo o recurso da escrita nas peças que utilizava nos tribunais, mas é óbvio que a técnica de escrita de advogado não tem nada que ver com técnica do romance, e essa fui descobrindo naturalmente, com as minhas experiências pessoais.

Quais são as suas preferências literárias?
As minhas referências literárias são mais da literatura escrita em português. Quem mais me marcou foram os autores portugueses: Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco e o brasileiro Machado de Assis. São mestres as contar histórias pela forma simples e rica como escrevem. Leio-os para me inspirar na forma como descrevem ambientes e contam histórias. Quanto aos contemporâneos, acho que um dos romances históricos mais bem conseguidos dos últimos tempos é o Equador, do Miguel Sousa Tavares.

José Eduardo Agualusa – Entrevista a propósito de “Milagrário Pessoal”

O angolano José Eduardo Agualusa é um contador de histórias. Pequenas ou grandes, não há como fugir a isso. Milagrário Pessoal, o seu último romance (edição Dom Quixote), é um excelente exemplo disso. Há uma história de amor, central, mas à volta dela decorre uma infinitude de outras histórias. E no meio de tudo isto e ao longo de todo o livro há uma defesa (e um elogio) da língua portuguesa. Agualusa, numa visita em Novembro ao Norte de Portugal, falou de tudo isto, e muito mais, ao Porta-Livros e manifestou a sua estranheza por não haver outros autores a dedicarem os livros seus à língua portuguesa. A conversa serviu também para falar de Angola e da profunda desilusão que sente por ver o país seguir um caminho que não era o previsível depois de terminada a guerra. “Parece um disparate completo, não se compreende, não faz sentido nenhum”, diz relativamente à situação que se vive em Angola.
(Fotografia de Jorge Simão)

Começando por uma pergunta básica, diga-me o que o levou a colocar os neologismos como base do seu romance Milagrário Pessoal?
A questão dos neologismos é um pretexto. O livro conta a história de um homem que se apaixona por uma mulher e que para a seduzir lhe oferece uma maneira de dizer o mundo, uma linguagem nova. A história dos neologismos é um pretexto para contar essa outra história de amor e para falar da construção de uma língua, desta aventura que é a construção da língua portuguesa.

E porque sentiu necessidade de dedicar um livro à língua portuguesa?
É uma coisa que já está dentro de mim há muito tempo, é uma questão que me interessa muito. Eu trabalho com a língua, com a palavra, e desde que me conheço que tenho um grande interesse em perceber como é que surgem as coisas, tudo o que diga respeito à linguagem, a origem da língua. Para mim é um assunto absolutamente fascinante, que, aliás, acho que interessa à maioria das pessoas.
Por exemplo, mesmo este barulho todo que se fez, aqui, à volta do acordo ortográfico, não merecia, porque não é um assunto muito interessante. Mas mexeu com as pessoas porque mexe com a linguagem. O que é estranho é não ter havido ninguém antes de mim a escrever um romance sobre a língua portuguesa, porque parece um tema óbvio.

Conhecedor como é do português que se fala em Angola, Portugal, Brasil, pensa que haverá uma tendência para este se unificar ou cada vez mais para em cada região ou país haver um português diferente?
Há sempre dois sentidos, duas forças. As línguas tendem a separar-se em situações de isolamento. O crioulo de Cabo Verde só foi possível porque aconteceu numa ilha. Não há crioulos em Angola, no Brasil, porque não houve isolamento suficiente. Houve tanto em Angola como em Moçambique situações quase de crioulo, mas depois nunca chegou a afirmar-se. Ora a situação que vivemos hoje no mundo é o contrário disso, de grande mobilidade. Nunca como agora houve tanto movimento de pessoas e ideias entre todos os países de língua portuguesa. Hoje, qualquer português, desde o da cidade ao do interior, do campo, tem um conhecimento relativamente profundo do português do Brasil graças às telenovelas. Isto é algo completamente novo. Há trinta anos um português não sabia distinguir a variante carioca da variante nordestina, hoje qualquer um sabe. Da mesma maneira, há actualmente um grande número de brasileiros em Angola, em Portugal, de portugueses em Angola, então há um trânsito enorme que nunca houve. E isso faz com que a língua se aproxime. Os jovens portugueses hoje apropriam-se da variante do português angolano, por causa da música, como a dos Buraka Som Sistema, que tem uma influência grande na juventude.

Sente que há pessoas reticentes, até conservadoras, em adoptar palavras novas que podem vir de Angola, ou do Brasil, ou isso será mais a posição de algumas elites que ficam mais incomodadas?
A gente vê na juventude, e a portuguesa é muito receptiva. Aliás, a juventude é sempre receptiva a novidades. Acho que só entram na língua as palavras – essa questão entra no livro a dada altura, há uma jovem linguista que diz isso – que têm de entrar, as outras não entram, ficam à porta. As línguas são assim mesmo, e o que tento mostrar no livro é isso: o português é uma construção colectiva desde a origem, com uma contribuição africana muito grande desde o início. É bom lembrar que antes de Portugal colonizar África, África colonizou Portugal durante oito séculos, mais tempo do que Portugal passou em África, através dos árabes. E a contribuição do árabe para a língua portuguesa é essencial e toda a gente a conhece. As pessoas não conhecem tanto a contribuição africana, mas há, há muitos séculos, palavras dentro da língua portuguesa que vêm do quimbundo, de Angola, que estão lá há tanto tempo que as pessoas não se apercebem disso. Por exemplo, “cambada”, que vem de “camba/amigo”, e “minhoca”.
O português é uma construção conjunta de toda a gente que fala português e isso é que faz dele uma língua tão interessante, com tanta elegância, elasticidade e plasticidade. Mesmo em relação ao Brasil, também insisto sempre, não acredito que vá haver uma aproximação, mas, se acontecesse, era uma reaproximação, porque na realidade o português do Brasil tem a ver com o português arcaico.

Não pensa que seria necessário desdramatizar um pouco o aparecimento de palavras novas, como as que chegam, por exemplo, através da internet, como “googlar”?
Dessas palavras, só vão ficar as que são úteis, aquelas para as quais não há um equivalente. Lembro que quando foi das novelas houve uma grande discussão em Portugal, que entretanto desapareceu, com o argumento de que o português do Brasil estaria a colonizar Portugal, o que não se verificou. Entraram aquelas expressões, duas ou três, para as quais não havia um equivalente, as outras não entram. Os portugueses não dizem “cara”.
Mesmo dentro de Portugal parece-me mais ameaçador, e aí já se nota a diferença, a uniformidade de sotaques da própria televisão. Aqui no Porto, por exemplo, por que é que não há locutores com sotaque do Porto nas televisões nacionais? Ou alentejano? Isto é mais importante, mas ninguém fala nisso. Há um movimento de uniformização por causa das televisões.

Agora, falando um pouco a um nível mais pessoal. Por vezes, quando está a escrever, não sente necessidade de criar palavras? E, por outro lado, não há palavras que o repugnam e que gostaria de eliminar do dicionário de português?
Bem, eu aí, como escritor, tenho a vantagem de não utilizar quando não gosto. O livro também fala um pouco disso, de certas palavras que são utilizadas por políticos, horrorosas, burocratas. Por outro lado, também há situações em que eu, enquanto escritor, sinto necessidade de criar. Este livro tem algumas brincadeiras, algumas situações, mas a mim interessa-me, por exemplo, os arcaísmos. Tenho muita pena de certas palavras muito bonitas que se perdem, que deixam de ser utilizadas, e o que tento fazer nos meus livros é recuperá-las, colocá-las em circulação. Não é fácil, mas acho que todos temos essa obrigação de não deixar morrer certas palavras.

Chega a incorporar personagens reais nas suas histórias. O que é que sente ao mexer na vida dessas pessoas e a criar facto ficcionais à volta delas?
Há vários tipos de personagens. Este livro, por exemplo, é uma homenagem a três personalidades angolanas, duas das quais foram marcantes na minha formação, o Mário António de Oliveira, que não conheci pessoalmente, e o Mário Pinto de Andrade. E um anarquista angolano muito pouco conhecido, uma homem que combateu na guerra civil de Espanha e depois fez a libertação de Paris. A minha personagem principal pega nisto, numa amálgama destas três figuras. O Mário Pinto de Andrade aparece como personagem num outro livro meu, Estação das Chuvas. Para mim foi uma maneira de continuar um diálogo com ele, era uma pessoa por quem tinha uma consideração muito grande e com quem gostava muito de conversar.
Noutros casos, é uma maneira de dar uma maior credibilidade à ficção. Acho que se tem de ter algum cuidado, é evidente, mas não é nada que eu tenha inventado, é uma coisa que a literatura universal faz.

As suas personagens ficcionais chegam a ganhar vida própria, perde o controlo sobre elas no processo de escrita, ou já sabe desde o início como vão evoluir?
Não, não sei. Acho que o mais interessante é isso, e se alguma coisa aprendi ao longo destes vinte anos que trabalho como escritor é deixar as personagens seguir os seus caminhos. O trabalho do escritor é seguir as personagens. Há determinadas personagens que nós pensámos que poderiam ter mais força e acabam por se revelar muito frágeis, e há outras que seriam secundárias e começam a ganhar força. Eu aprendi a deixá-las crescer. Devemos tentar segui-las e ir aprendendo a medida que nos vão abrindo portas e entrando noutros quartos escuros, que não conhecemos. O que o escritor tem de fazer é investigar, descobrir o que há a descobrir, e deixar a personagem crescer.

Alguma personagem sua alguma vez o desiludiu seguindo caminhos que não estava a espera que seguisse?
Não. Desiludiu mais no outro sentido de que há algumas personagens que eu esperava que crescessem e fossem mais fortes e revelam-se mais fracos. Há personagens que desaparecem nos livros. As mais interessantes, e isso não é novidade, são as mais perversas, porque são mais complexas e a maldade para mim é sempre uma estranheza. Que as pessoas sejam boas parece-me natural, que as pessoas sejam mas é que é estranho. Normalmente, as personagens perversas acabam por crescer mais, ganhar uma densidade maior.

Aproveita este livro – que tem a história central de amor, a questão da língua portuguesa – para contar várias histórias, nomeadamente aborda o problema da guerra em Angola. Sente-se um contador de histórias? Também escreve muitos contos, tem necessidade de ir contando essas pequenas histórias?
Sim, sim. Este livro tem imensas histórias ligadas à questão da língua e da linguagem e a maior parte delas são como rios que depois vão desembocando no mesmo oceano, que é a história maior.
Para mim, escrever é contar histórias, embora haja grandes escritores que são capazes de escrever um livro sem uma história. Mas são escritores com um estilo tão forte, com tantas ideias, que conseguem sustentar um livro assim. Para mim ainda é importante contar histórias.

Agradou-me bastante neste livro ver histórias como a do Zé do Telhado e atroca de correspondência com Camilo Castelo Branco. Isso é uma maneira de prender o leitor ou surgiu-lhe naturalmente?
Claro que vamos aprendendo estratégias de cativar o leitor.
O livro é também uma homenagem ao Camilo que foi um escritor com uma riqueza vocabular muito grande. É seguramente o escritor de língua portuguesa que tinha o maior fascínio pela palavra e com uma maior riqueza de vocabulário e então era quase impossível não prestar essa homenagem ao Camilo. Sendo ainda por cima um escritor que deixou tantos e tantos livros que permite jogar inventando livros. Os próprios camilianos ficam na dúvida; mesmo o camiliano mais feroz não conhece toda a obra do Camilo.

Vive entre Portugal e Angola. Como é que tem vivido esta fase em Angola do pós-guerra?
Infelizmente, há um ano que não vou a Angola, porque de há um ano para cá a situação complicou-se bastante politicamente. Em termos económicos o país continua a crescer, não tanto como seria previsível, e infelizmente a crescer também de forma desorganizada e com distorções muito graves. Mas continua a crescer… Agora do ponto de vista político, infelizmente aconteceu o contrário, ou seja, houve uma degradação. O que está a acontecer nos últimos meses é bastante preocupante, porque o regime está fechado. Os jornais e o jornalismo independente é algo de muito importante nesta fase, mas há falta de diálogo e falta de instrumentos de contestação. E o jornalismo independente tem vindo a ser perseguido. Dois dos principais jornais independentes foram comprados por uma empresa que ninguém sabe quem está atrás dela. E num jornal onde eu escrevia, A Capital, para o qual deixei de escrever, duas edições foram queimadas à saída da gráfica. Há jornalistas a ser perseguidos; Rafael Marques sofreu um atentado à vida dele há muito poucos dias. É muito preocupante.
Não se compreende, mesmo de um ponto de vista meramente estratégico. Parece um disparate completo, não se compreende, não faz sentido nenhum.
O regime percebeu que, faça o que fizer, desde que não sejam atrocidades desmedidas, não vai haver contestação, porque o país está a crescer economicamente e porque no caso de Portugal tem interesses cada vez maiores em Angola. Ao mesmo tempo que Angola tem vindo a aplicar dinheiro em Portugal e então o dinheiro fala mais alto, infelizmente.

Como encara este “regresso” de portugueses a Angola, como muitos encaram como sendo uma espécie de regresso ao “Eldorado” do passado?
Eu acho que as condições, mesmo políticas, não são as melhores. Quando se pensa que Angola continua a dificultar a concessão de vistos de trabalho… A maioria destes portugueses vai trabalhar com vistos de turismo, portanto vai trabalhar em situação igual, isto já diz tudo, não é favorável, não é como muita gente pensa, nada é fácil em Angola. Infelizmente, o que tem vindo a acontecer é que muitas pessoas se desiludem. Isso é mau porque eu gostaria era que houvesse um investimento continuado e sustentado, que as pessoas fossem bem recebidas e que ficassem, e não que fossem apenas ganhar uns trocos para voltar daqui a uns meses. Mas, infelizmente, não vejo condições políticas para isso.

Como é que os angolanos, as pessoas no dia a dia, encaram a presença dos portugueses em Angola?
Portugueses e não só, há portugueses, brasileiros, chineses, etc. Acho que, tal como em qualquer outro país, se houver crescimento as pessoas são bem recebidas. Se, como é o caso actual, esse crescimento não favorece a generalidade da população e a miséria continua a ser regra, há sempre sectores da sociedade que reagem negativamente. E Angola não é excepção. Angola tem uma forte corrente xenófoba, muito forte mesmo, que se explica assim: as pessoas vêem muita gente que vem e ganha dinheiro fácil e que se associa a sectores do regime mais corruptos e a generalidade da população não beneficia de nada. É uma tragédia e é muito triste que seja assim, muitíssimo lamentável. É um facto, Angola não é um país fácil e é um país no qual existe uma fortíssima corrente xenófoba, não há como iludir isto.

Como é que a literatura e outras formas de arte podem contribuir para melhorar a situação?
Eu acho que a literatura e as outras formas de arte – a música em Angola é muito importante – podem servir para provocar debate, para fazer com que determinadas questões possam ser discutidas mais abertamente. Resumindo, podem contribuir para uma melhoria do pensamento. A arte deve servir essencialmente para isso, para reflectir, e isso é particularmente importante num país como Angola que tem poucos mecanismos de diálogo, onde as pessoas ainda não se habituaram a falar umas com as outras.