“A Sombra do Templário” – Núria Masot

sombra“A Sombra do Templário”, romance de estreia da espanhola Núria Masot – editado em 2005 pela Dom Quixote –, contém uma história de espionagem decorrida em 1265, em Barcelona. Para além dos templários, como deixa a entender o título, envolve também o papa, a casa real francesa e os judeus, tendo por cenário a Barcelona medieval, nomeadamente o seu bairro gótico.
O protagonista é um templário, Bernard Guills, que apesar de morrer envenenado quase no início da aventura acaba por ser o motor desta intrincada história capaz de agradar aos amantes de romances históricos (e não só) onde, mais uma vez, é posta em causa a base do poder do cristianismo.
Guills, que chega a Barcelona a bordo de um barco, transporta consigo uns importantes pergaminhos, mas é envenenado e roubado antes de pôr os pés em terra, onde ainda é socorrido por um velho médico judeu, Abraão Bar Hiyya, a única personagem real desta obra. Ao velho judeu Guills, já moribundo, pede que entregue a um seu discípulo, Guillem de Montclar, os manuscritos que transportava com todo o secretismo. Só que estes pergaminhos acabam por nunca chegar às mãos de Guillem, que se vê assim levado a desencadear a sua primeira missão, embora não se sinta ainda totalmente preparado mesmo com todos os ensinamentos que Guills já lhe havia proporcionado.
Guillem parte assim à busca do precioso documento, mas está numa corrida com muitos concorrentes cientes da importância do pergaminho, que contém revelações capazes de alterar a História do cristianismo. O pior obstáculo de Guillem é “A Sombra”, velho inimigo da Ordem e, particularmente, de Guills.
Entre a aventura e o mistério, bem doseados por Núria Masot, temos uma trama intrincada, embora longe de atingir o brilhantismo. A autora desembaraça-se melhor na descrição de ambientes ou cenários do que no desenvolvimento da própria história, à qual falta às vezes um pouco mais de mistério.

A autora
Núria Masot, que nasceu em Palma de Maiorca em 1949, foi jornalista e trabalhou no teatro antes desta estreia na literatura, que aconteceu, em Espanha, em 2004. Amante da história e dos relatos de aventuras, foi com naturalidade que optou por esta via na escrita de “A Sombra do Templário”, para a elaboração do qual recorreu a uma vasta bibliografia do templários catalães e ao arquivo histórico de Barcelona.
Em “A Sombra do Templário”, no início de cada capítulo vem uma citação do universo dos templários com perguntas e deveres para os que pretendiam aderir à ordem.

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“Gone, Baby, Gone” – Dennis Lehane

gone-baby-goneTratou-se apenas de coincidência (e nada mais do que isso) a edição de “Gone, Baby, Gone”, de Dennis Lehane, na mesma altura em que ocorreu o desaparecimento de Madeleine McCann no Algarve.
Para os mais distraídos este livro pode ser encarado como um aproveitamento da situação, mas há que desmontar essa ideia. “Gone, Baby, Gone” é, “simplesmente”, um policial de grande nível, escrito em 1998 pelo mesmo autor de “Mystic River” e “Shutter Island”, também já lançados em Portugal pela mesma editora (Gótica) que nos fez chegar este intenso drama policial.
Neste romance, já adaptado ao cinema por Ben Affleck, uma menina de quatro anos (Amanda) desaparece de sua casa, onde havia sido deixada sozinha pela mãe, mais interessada em ir para um bar. Limitou-se esta a dar seguimento ao seu “way of life”, mais inclinado para o álcool e as drogas do que para tratar da filha.
De início, toda a gente parece interessada no caso, alvo de uma grande cobertura mediática que deslumbra, nomeadamente, a mãe de Amanda, pouco importada em ser estrela da TV pelos piores motivos.
Com o passar do tempo o interesse esmorece, embora o caso não tenha sido esquecido por um casal de detectives privados, Patrick Kenzie e Angela Gennaro, contratado pelos tios de Amanda, aparentemente os únicos interessado no destino da menina desaparecida.
É nesta fase, alguns meses decorridos sobre o desaparecimento sem que a investigação produza resultados, que o mistério se alastra definitivamente para os meandros do crime de Boston, onde é difícil distinguir os bons dos maus, ou seja, onde não se sabe se são melhores os polícias ou os bandidos. Ou melhor, se não há bandidos melhores do que agentes da autoridade.
Como é norma nas obras de Lehane, este desenha Boston de forma implacável – é a sua cidade, mas talvez por gostar tanto dela nada lhe perdoe. E esse retrato da sociedade local, nu e cru, é talvez uma das melhores “armas” desta obra, onde nada é nítido e transparente e onde as consequências do rapto vão atravessar de forma transversal todos os envolvidos, não escapando ninguém incólume. Para as personagens torna-se impossível discernir e decidir sobre o que está certo ou errado e se uma ou outra opção vai trazer implicações boas e más (mas indeléveis) em quem opta e em quem o rodeia.
Corrupção, droga, armas, lutas de poder, pedofilia, tudo isto surge neste romance e tudo isto surge ligado ao rapto tão só porque as ramificações do mal estão tão ligadas que seria impossível destacá-las umas das outras. Tudo tem que ver com tudo e nada acontece por acaso.

“A Namorada Portuguesa e outras 100 Histórias” – Dan Rhodes

a_namora“A Namorada Portuguesa e outras 100 Histórias” (Gótica), do britânico Dan Rhodes, é um livro especial para sorver de um só trago, porque é impossível resistir ao desejo e à tentação do virar constante de mais uma folha.
Como o nome indica, são ao todo 101 histórias, cada uma no original inglês com 101 palavras, onde há um tema comum, a “namorada”.
São histórias sobre a namorada do narrador, todas com um sentido de humor arrasador, muitas delas cínicas e outras bastante chocantes, frias e cruéis. Por isso, é preciso estar de mente aberta para “entrar” neste livro com uma enganadora capa angelical, porque o que vamos encontrar lá dentro é um mundo por vezes negro e até surreal, mas que muito nos conta sobre as relações a dois. Contudo, não há vantagem para ninguém, tanto fica mal o narrador como a(s) sua(s) namorada(s).
Mini-histórias de amor, há para todos os gostos, as que acabam bem, as que acabam mal, as que nem se percebe bem, falam de aproximação, de afastamento, de tristeza, desprezo, amor eterno, etc., enfim, tudo o que possa caber em qualquer relação amorosa.
Na versão portuguesa da Gótica, a última história é precisamente “A namorada portuguesa”, uma opção que acaba por proporcionar um final feliz:
“Apaixonei-me no momento em que a vi na cozinha do avô dela, vendo aqueles cabelos escuros ondulados a despenhar-se nos seus ombros portugueses.
-Queres um café? – perguntou-me sorrindo.
– Não estou lá com muita sede.
– O quê? Que tu dizes? – o inglês dela não era muito bom.
Agora, eu tenho setenta e três anos e ela, setenta.
– Queres beber um café? – perguntou-me hoje, sorrindo.
– Não estou lá com muita sede.
– O quê? Que tu dizes? – Nenhum de nós tem o dom das línguas.
Após cinquenta anos de casamento nunca falámos verdadeiramente um com o outro, mas amamo-nos mais do que as palavras podem dizer”.
“A Namorada Portuguesa e outras 100 Histórias” tem por título original “Anthropology”.
Dan Rhodes, nascido em 1972, foi nomeado pela revista Granta um dos melhores jovens romancistas britânicos.

“Anjos e Demónios” – Dan Brown

bert-anjos_demoniosDan Brown, norte-americano autor de “O Código da Vinci”, já antes havia escrito “Anjos e Demónios”, romance cuja acção decorre quase integralmente no Vaticano e que se revelou igualmente um tremendo sucesso de vendas.
É certo que muito deste êxito decorreu, em Portugal, do fenómeno “O Código Da Vinci”, mas quem gostou do romance que apresenta uma nova “versão” para a vida de Cristo de certeza que não fica defraudado com “Anjos e Demónios”, editado pela Bertrand.
As “muletas” utilizadas por Dan Brown são exactamente as mesmas: a religião por pano de fundo, um ritmo alucinante (quase cinematográfico – aliás, está aí a chegar a versão de cinema, de novo com Tom Hanks), uma boa intriga e surpresas suficientes para deixar o leitor “eternamente” preso à obra.
“Anjos e Demónios”, que tem por protagonista o simbologista norte-americano Robert Langdon (o mesmo de “O Código da Vinci”), recupera uma organização secreta e supostamente extinta, a Illuminati, que conspira contra a Igreja Católica, a sua inimiga mortal.
Esta organização será a responsável pela morte de um cientista do CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire), centro de pesquisa situado na Suíça, que acabou de descobrir o modo de fabricar antimatéria, forma de energia que recentes teorias da física apontam como tendo estado presente na criação do universo. O cientista assassinado era também um devoto religioso e procurava encontrar a ponte entre a ciência e a religião, duas áreas que desde há séculos percorrem caminhos antagónicos. Mas, a sua descoberta acaba por ser roubada e utilizada pelos enigmáticos Illuminatti como arma para fazer explodir o Vaticano, eliminando assim o maior símbolo da Igreja Católica. O objectivo é levar a ciência a derrotar definitivamente a religião, uma vingança por atitudes da Igreja como as que teve, por exemplo, contra Galileu.
A história decorre a um ritmo trepidante, com capítulos estrategicamente pequenos, de forma a não deixar que o leitor se distraia nem tenha vontade de parar de ler.
Entra de rompante com o crime do cientista e em poucas páginas já temos Langdon na Suíça, para onde foi chamado por ser um expert em simbologia – no corpo do cientista estava gravado a fogo um ambigrama que Langdon teve dificuldade em aceitar: a palavra Illuminati. Incrédulo, custa-lhe a crer que sejam na verdade elementos da sociedade da qual deixaram de existir vestígios. Mas, de pista em pista, Langdon, acompanhado pela filha do assassinado (Vittoria Vetra), também ela cientista, viaja rapidamente para o Vaticano, onde a Illuminati prepara um grande atentado, precisamente no momento em que está a ser feita a escolha de um novo papa. Mas… os quatro cardeais favoritos foram raptados e são o instrumento inicial da vingança dos defensores radicais da ciência.
Langdon e Vittoria, com a ajuda da Guarda Suíça e do camerlengo, o cardeal que mais perto está de um papa, tentam numa corrida contra-relógio travar o plano dos Illuminati. Seguem pistas através de obras do escultor e arquitecto Gian Lorenzo Bernini, autor, no século XVII, de diversas igrejas no Vaticano e tido como membro dos Illuminati. Langdon e companhia não conseguem evitar todas as armadilhas do inimigo.
No meio desta história intrincada, mas fácil de seguir, Dan Brown lança elementos para uma reflexão sobre o actual papel da Igreja Católica no mundo, assim como da Ciência, abrindo pistas para novos rumos que cada uma destas áreas pode seguir para melhor servir a Humanidade.
Só uma mente menos aberta pode ver neste livro material de ataque à Igreja.
Dan Brown recorre a uma escrita clara e concisa, que permite que mais facilmente se siga o enredo bem trabalhado e coerente, mesmo quando surgem grandes e agradáveis surpresas no final.
Para além disso, há ainda tempo para descobrir alguns segredos do Vaticano (cidade e instituição), que palmilhamos em ritmo de corrida atrás dos temíveis Illuminati.angelsanddemons_1

“A Planície em Chamas” – Juan Rulfo

planicie1Juan Rulfo, escritor mexicano com uma curta produção literária, não precisou de mais de duas obras (uma novela, “Pedro Páramo”, e um livro de contos, “A Planície em Chamas”) para se tornar um dos nomes maiores da literatura mundial.
“A Planície em Chamas” (Cavalo de Ferro) é uma obra composta por dezassete duros e sofridos contos, onde impera a pobreza e o sofrimento, em cenários repletos de sol, de pó, de aridez e de ambientes de trevas. É no fundo o ambiente onde Juan Rulfo viveu, dado ter nascido em 1918 na árida e pobre província de Jalisco.
Assim, nestes 17 contos, editados pela primeira vez em 1953, descreve, como explicou, a devassidão humana e geográfica.
“Luvina” é o conto que melhor sintetiza estes elementos. Trata-se de um diálogo entre dois homens, no qual um explica ao outro o que vai encontrar “lá em cima, em Luvina”. É uma terra afastada de tudo, no alto de um monte, “amaldiçoada por essa pedra cinzenta”. Em Luvina não se passa nada e só há pobreza, mas ninguém de lá sai porque não quer deixar ficar os mortos, a única coisa que lhes resta.
É assim, ao longo de “A Planície em Chamas”. Pessoas despojadas de tudo, mas principalmente de esperança. São personagens que carregam um fardo de um passado de sofrimento, ao qual não querem ou não podem escapar.
“E a mim vem-me à cabeça que já caminhámos mais do que aquilo que andámos”, diz a certa altura uma das personagens de “Deram-nos a terra”, e esse é o melhor exemplo da impotência das gentes que povoam as histórias de Rulfo. É a sensação de que não vale mais a pena caminhar. Mas, as gentes criadas por Rulfo são resistentes, não desistem enquanto restar um pouco de forças, seja a desafiar a Natureza ou os próprios senhores das terras onde são explorados. São, contudo, pessoas que bastas vezes se tornam cruéis e se sentem desculpadas pelos tormentos entretanto vividos, conscientes que nunca o Paraíso será delas.
Com uma escrita realista que convenceu consagrados como Gabriel García Marquez e Jorge Luís Borges, Rulfo leva-nos por caminhos duros e pedregosos, e é à custa de muito esforço, mas ainda com mais gosto, que atravessamos as suas linhas e páginas.
Juan Rulfo morreu em 1988, depois de dar a conhecer um escrita inovadora que fundou o realismo mágico.

“Zorro – O Começo da Lenda” – Isabel Allende

zorro-nova1“Zorro – O Começo da Lenda” é um projecto único onde surgem unidos um dos heróis mais populares do mundo – Zorro – e uma das mais conceituadas escritoras da actualidade – Isabel Allende. Estes dois ingredientes por si só não bastam para fazer um bom livro, mas a verdade é que neste caso isso aconteceu. E a ideia até era arriscada, porque Allende fez sucesso como autora de outro tipo de obras e pegar num herói já com nome e personalidade feitas poderia ser limitativo. Contudo, Isabel Allende soube respeitar o justiceiro da mascarilha e construiu uma infância e juventude que encaixam na perfeição na ideia que temos de Zorro.
“Limitada” pelas características imutáveis de Zorro, a escritora aplicou toda a sua imaginação e fantasia na construção de um “passado” para o herói e, acima de tudo, para o homem que o “criou”, Diego de la Vega, recorrendo para tal a uma escrita rica mas acessível.

Assim, na primeira parte do livro acompanhamos a infância de Diego, muito antes de este um dia sequer imaginar que viria a ser um herói misterioso. Diego nasceu no Sul da Califórnia no século XVIII, filho de um importante fazendeiro e de uma índia guerreira, e da mistura destes dois mundos resulta a “essência” do espírito de Zorro. Diego tanto aprende os hábitos da aristocracia proveniente de Espanha colonizadora, como os costumes dos índios colonizados. Assim, é ao mesmo tempo fidalgo, um senhor, e jovem com espírito selvagem e corajoso. A unir estes dois mundos está um grande sentido de justiça, que começou a germinar quando viu o tratamento infligido aos índios pelos colonos.

Diego cresce (e vive) acompanhado por Bernardo, amigo para todas as ocasiões, que nasceu praticamente em simultâneo com ele, o que faz dos dois verdadeiros irmãos. O que um tem em força e impulso, o outro contrabalança com ponderação.
Aos 16 anos, para receber uma educação europeia, Diego parte para Barcelona, acompanhado pelo inseparável Bernardo. A viagem por mar tem a particularidade de proporcionar uma passagem pelos Açores.
Neste ponto do romance, Isabel Allende mistura a aventura e a acção com conhecimento histórico, já que retrata fielmente a situação de Espanha, então ocupada pelos Franceses, liderados por Napoleão. Diego de la Vega cai precisamente entre estes dois mundos, com os quais convive diariamente. São tempos complicados para Diego, tanto pela instabilidade política e militar como pelo facto de ter despertado para o amor, invariavelmente não retribuído – pelo menos pela parte das raparigas por quem se apaixona, o que será uma constante na sua vida.

É em Barcelona que acaba por nascer Zorro, quando Diego tem de socorrer, em segredo, algumas pessoas que lhe são próximas. Para isso faz-se valer dos seus conhecimentos de espadachim, aprendidos com um verdadeiro mestre de esgrima e mentor que o iniciou na sociedade secreta “A Justiça”, que se dedica a ajudar pobres e indefesos.
Mas nem tudo corre bem a Diego, que a certa altura se vê obrigado a regressar à Califórnia para ajudar a família que o acolheu em Barcelona e que entretanto caiu em desgraça. A pé e em segredo, Diego e Bernardo atravessam Espanha, disfarçados de peregrinos de Santiago, em direcção à Corunha, onde apanham o barco para a América.
É nesta fase que se assiste à consolidação da personagem Zorro, com a parte justiceira de Diego a levar a melhor, mesmo que para isso tenha de abdicar de alguns prazeres da vida que teria por garantidos.
Neste livro há acção, amores e desamores, duelos, piratas, viagens, humor, morte, sofrimento, ou seja, todos os condimentos de um grande romance de aventuras, que em tudo honra o “futuro” de Zorro.
“Zorro – O Começo da Lenda” é uma edição da Difel.

“O Naufrágio da Luz” – Hernán Neira

naufragio8Hernán Neira é mais um, entre vários escritores chilenos, com qualidades para se afirmar no panorama literário internacional.

“O Naufrágio da Luz”, editado em Portugal pela Asa, é uma belíssima obra, escrita de uma forma directa, dura e crua, acompanhando assim o estilo do enredo. Não há aqui espaço para floreados, já que logo à terceira página o leitor está envolvido no enredo e à trigésima já tanta coisa se passou que poderia acabar ali mesmo o romance.

Apesar de se passar essencialmente numa ilha e num farol, o ambiente é absolutamente claustrofóbico e assustador. Na ilha, da qual nunca se sabe nem nome nem localização geográfica, vive um povo estranho, muito fechado e hostil, completamente adverso ao amor e ao calor humano – quase se pode falar de uma sub-espécie. Para lá foi trabalhar um jovem faroleiro, que acaba por manter uma relação meramente formal com a comunidade local, por cumprir as regras impostas pelos insulares. Um dia conhece Mareika, uma jovem que estranhamente pouco diz aos locais e parece ter um ar de abandono e desolação. Aos poucos vão ficando mais íntimos e tornam-se num casal, com os seus próprios sonhos. O principal: sair da ilha. Mas aí começam verdadeiramente os problemas, não só porque aquele pedaço de terra é praticamente inacessível por mar (excepto alguns dias por ano), mas também porque os ilhéus tudo fazem para impedir a partida.

“O Naufrágio da Luz” acaba por ser uma espécie de tratado sobre a condição humana, sobre o que o ambiente faz às pessoas, transformando-as em seres estranhos e absurdos e, principalmente, maus e demoníacos, sem sentimentos. Sem nunca se saber onde fica a ilha (também não interessa), parece-nos estarmos a entrar numa viagem até ao fim do mundo, até ao limite, um teste ao humanismo de cada um, onde várias vezes ganha o lado animal e selvagem dos indivíduos.

Este livro ganhou o Prémio “Las Dos Orillas” no Salão do Livro Ibero-Americano de Gijón e foi publicado em simultâneo em Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha e Grécia.

“O Sol dos Scorta” – Laurent Gaudé

solscorta12O Sol dos Scorta”, do francês Laurent Gaudé, editado pela ASA, pode ser considerado, sem qualquer margem de risco, um dos melhores romances de 2005, tal a qualidade da escrita, a imaginação e o realismo de que está impregnado – não foi por acaso que ganhou o prestigiado Prémio Goncourt 2004.
Neste romance, do mesmo autor de “A Morte do Rei Tsongor”, cerca de 220 páginas chegam para contar a saga de uma família amaldiçoada, com raízes numa pequena, quente e seca aldeia do sul de Itália, Montepuccio. Gaudé descreve de forma sublime essa aridez, que da geografia escorre para as personagens. O início da obra, aliás, é revelador. Um homem, um burro, calor e uma aldeia deserta na hora da canícula, logo após o almoço. É uma saga familiar, mas à escala da pequena Montepuccio. Os Scorta, a família em causa, são poderosos, mas naquele ambiente pequeno, fechado e atrofiador, onde só há gente que se revela incapaz, por falta de preparação, de sobreviver longe dali.
A história começa em 1870, quando Luciano Mascalzone, um bandido que esteve preso quinze anos, regressa à “sua” Montepuccio. Sabe que nada de bom o espera – sabe que a morte é quase certa – mas tem uma obsessão: possuir Filomeni Biscotti, um desejo da juventude que o manteve vivo na prisão. Entra na aldeia, com o seu burro, na hora em que todos se escondem, na hora do sol inclemente, e vai directo a casa de Filomena.
Sem Luciano perceber, quem lhe abre a porta é a irmã mais nova desta, Immacolata, como o nome deixa adivinhar ainda virgem. Ela deixa-se violar pelo regressado, que não se apercebe da “troca”. Pensando ter cumprido o seu sonho de juventude, atravessa de novo a aldeia, mas desta vez não escapa à fúria dos aldeões, acabando por morrer satisfeito, sem saber que tinha possuído a mulher errada – Filomena havia morrido há já vários anos.
Immacolata viria a dar à luz Rocco, mas morre quase de imediato. Os aldeões, sendo Rocco filho de quem era, pretendem matá-lo, mas a criança é salva pelo padre e enviada para outra aldeia, onde viria a ganhar o nome Scorta – nascia assim, de um equívoco, uma nova linhagem. Tal como pai, Rocco dedicou-se à vilanagem inspirando temor em Montepuccio e redondezas. Assim seria em gerações futuras, de todas nos contando a história Gaudé. Os Scorta acabam por ganhar o respeito dos habitantes de Montepuccio, tanto pelo dinheiro que foram amealhando como pelo temor que inspiravam. Mas “O Sol dos Scorta” é, essencialmente, um livro sobre a importância dos laços familiares (ou de sangue) que resistem a todo o tipo de adversidades.
É a história de uma família amaldiçoada ao longo dos anos, e ao mesmo tempo a história de uma (como muitas outras) pequena aldeia com dificuldades em atravessar a passagem do tempo e em acompanhar a evolução natural. É que Gaudé descreve também os contrastes entre a tradição e a modernidade, nomeadamente com a chegada do turismo.
A religião é outro dos temas-chave deste romance, sendo explorada através da relação dos Scorta com os padres que se vão sucedendo na aldeia, uns mais abertos, outros mais retrógrados, mas sempre com um afecto especial, e até estranho, por aquela família onde Bem e Mal têm contornos pouco definidos.

“A Sombra do Vento” – Carlos Ruiz Zafón

sv2Chegou de forma algo discreta às livrarias nacionais em finais de 2004, mas “A Sombra do Vento”, do espanhol Carlos Ruiz Zafón (Publicações Dom Quixote), é sem dúvida uma das melhores obras literárias dos últimos anos. A acção decorre em Barcelona, sendo a própria cidade uma das personagens principais do romance, tal a influência e pressão que exerce sobre o enredo.
A história arranca em 1945, quando um rapaz, Daniel Sempere, é levado pelo pai, dono de uma livraria, a um local misterioso, o Cemitério dos Livros Esquecidos. Ali, ao acaso, escolhe uma obra que vai mudar a sua vida e levá-lo por caminhos tormentosos em busca de verdades e na tentativa de solução de mistérios.

O livro em questão chama-se, precisamente, “A Sombra do Vento”, e é da autoria do desconhecido Julián Carax.

Daniel “devora” o livro e fica fascinado pelo autor, tudo fazendo para lhe encontrar o rasto. Só que a busca, longa de anos, leva-o (e a nós) a viver uma série de acontecimentos, muitos incompreensíveis e com algo de fantasmagórico.

Enredado num intriga sem fim, onde cada pista leva a outra ainda mais obscura, num caminho que ele se apercebe vai empurrá-lo até um final doloroso, é ajudado pelo fiel Fermín, um sem-abrigo que tirou das ruas para trabalhar consigo na livraria do pai. Os dois levam a cabo uma tão paciente como perigosa investigação e vão conhecendo personagens estranhas, como o temível Fumero, um agente da autoridade que é um verdadeiro assassino, ou um assustador homem sem rosto determinado a eliminar todos os vestígios da obra, comercialmente falhada, de Carax.

Mas entre todos estes mistérios serpenteiam outras histórias, maioritariamente de amor. Uma delas, contada por terceiros, é a de Carax pela jovem Penélope, um amor proibido que seria afinal o motor de toda a trama. Outra é a do amor de Daniel por Bea, que encontra muitos paralelismos com a anterior. Aliás, aos poucos vai-se verificando que as histórias de Carax e Daniel têm tanto em comum que parece estarmos a rever a vida de um no outro.

Carlos Ruiz Zafón gere todos esta trama cheia de intrigas com uma aptidão notável, introduzindo novos e fantásticos elementos, como se de acontecimentos vulgares ou esperados se tratassem – portanto, não há perigo de se passar por aquela sensação tipo telenovela, de inclusão forçada de dados para fundamentar o complexo enredo. Pelo contrário, Zafón faz tudo de forma a que o enredo, intrincado de levar à loucura, seja absolutamente verosímil, mas sempre surpreendente.

“A Sombra do Vento”, que cativa desde logo por estar bem escrito, vai aos poucos prendendo o leitor à teia, e é a custo que se pousa a obra para uma pausa. Em crescendo prende irremediavelmente a atenção do leitor e é uma pena quando acaba. Não só “assistimos” a uma brilhante história, como através dela também ficamos a conhecer melhor o passado de Barcelona, aquele vivido nas ruas escuras.