«Há duas luzes acesas, uma no seu próprio escritório, que fica no último andar da casa, e a outra no segundo andar, na suíte da ama da sua filha.
Claudia, a mulher que trouxe há dez anos da Roménia para tomar conta da filha, pode estar acordada às quatro horas da madrugada desde que pelo menos às sete e meia esteja pronta a desempenhar as suas funções. Mas a única pessoa que pode acender as luzes no seu escritório é ele, Mircea Drekke. E Mircea Drekke encontra‑se no lado de fora, na estrada que atravessa a sua propriedade e que conduz à sua própria casa, ao lado do seu motorista, no carro que os trouxe de um negócio insatisfatório em Lisboa.
Portanto, há um intruso no escritório, e o facto de a única janela com outra luz acesa ser a da suíte de Claudia sugere que a ama da filha pode ser essa pessoa.»
(Topseller, 2014)
Categoria: Assim começa…
Assim começa… «Guerra Mundial Z», de Max Brooks
«A Guerra teve muitos nomes: “A Crise!, “A Era das Trevas” e “A Peste Ambulante”. Mais recentemente chamaram-lhe, o que também parece ter-se tornado moda, “Guerra Mundial Z” ou, mesmo, “Primeira Guerra Z”. Pessoalmente, não gosto desta última designação porque ela acaba sempre por sugerir que haverá uma inevitável “Segunda Guerra Z”. Para mim, o que aconteceu será sempre “A Guerra dos Zombies” e, apesar de muitos poderem contestar a exactidão científica da palavra zombie, o que o fizerem terão sempre dificuldade em descobrir um nome que seja mais globalmente aceite para designar as criaturas que quase nos levaram à extinção.»
(1001 Mundos, 2010. Tradução de Pedro Garcia Rosado)
Assim começa… «Divergente», de Veronica Roth
«Em minha casa temos um espelho. Está numa parede do patamar do andar de cima por detrás de um painel que desliza. A nossa fação deixa-me estar diante dele de três em três meses, no segundo dia do mês, que é quando a minha mãe me corta o cabelo.
Sento-me no banco e a minha mãe fica de pé atrás de mim com as tesouras, a dar ao dedo. Os cabelos vão caindo no chão, onde formam anéis de um louro pálido.
Quando acaba, a minha mãe afasta-me os cabelos do rosto e apanha-os num nó. Está muito calma e concentrada no que está a fazer. Tem praticado assiduamente a arte de se abstrair. Mas de mim já não posso dizer o mesmo.»
(Porto Editora, 2012. Tradução de Pedro Garcia Rosado)
Assim começa… «Paris, Os Passeios de um Flâneur», de Edmund White
«Paris é uma grande cidade, no sentido em que Londres e Nova Iorque são grandes cidades e Roma é uma aldeia, Los Angeles uma colecção de aldeias, e Zurique uma província.
Um amigo meu mais afoito define uma grande cidade como um local onde há negros e edifícios altos e em que se pode andar toda a noite numa roda-vida. Se levarmos em conta esta definição, teremos de reconhecer que, em Paris, há uma escassez de edifícios altos; embora tenha lançado (nos anos sessenta e início dos anos setenta) um projecto que visava encher Paris de arranha-céus, o Presidente Pompidou apenas conseguiu desfigurar o histórico traçado dos telhados da cidade com as mal atamancadas torres de uma extensão universitária, Paris VII em Jussieu (encerrada há pouco tempo por se encontrar copiosamente isolada com amianto), a aterradora Tour Montparnasse – e o desolado deserto de La Défense, a zona de escritórios.
(Edições Asa, 2004. Tradução de José Vieira de Lima)
Assim começa… «Catch-22» (Artigo 22), de Joseph Heller
«Foi amor à primeira vista.
A primeira vez que Yossarian viu o capelão ficou loucamente enamorado dele.
Yossarian encontrava-se hospitalizado, com uma dor no fígado que não era icterícia por uma unha negra. Os médicos estavam intrigados pelo facto de não ser mesmo icterícia. Se se tornasse icterícia, poderiam tratá-lo. Se não se tornasse icterícia e desaparecesse, poderiam dar-lhe alta. Mas aquilo de não ser icterícia por uma unha negra fazia-lhes confusão.»
(Dom Quixote, 2011. Tradução de Eduardo Saló)
Assim começa… «Se Não Podes Juntar-te a Eles, Vence-os», de Filipe Homem Fonseca
«O país está cheio de crimes violentos, paixões loucas e boa pastelaria. Da minha parte, espere-se um sorriso a cada um dos clientes quando atiram os pedidos sem me olharem no rosto. Fixam a montra, procuram os bolos que querem, apontam e cospem o pedido, palavras de ordem deitadas para o ar, despidas de qualquer noção de que este seu criado também é gente.
E eu sorrio e sirvo-os. Sou boa pessoa.»
(Divina Comédia, 2013)
Assim começa… «Amar Numa Língua Estrangeira», de Andrea Jeftanovic
«Um beijo no aeroporto. Não um beijo qualquer. Um beijo na sala de espera. Um segundo beijo no balcão da companhia aérea. Um beijo final na porta de embarque de um voo de ligação. Beijou-me sem entender bem o que dizia nem as perguntas que tentava tecer na sua língua. Beijo eficaz. Beijo de lábios unidos, ternos e mornos. Beijou-me outra vez, sabendo morder o meu lábio superior no preciso lugar onde se une com a válvula do desejo. Não um beijo qualquer, dado num dia qualquer. Não, um beijo na terça-feira 11 de setembro de 2011. Desde esse dia tenho Alex na ponta da língua.»
(Teorema, 2014. Tradução de Maria do Carmo Abreu)
Assim começa… «Dr. No», de Ian Fleming
«Pontualmente, às seis horas, o Sol punha-se atrás das Blue Mountains com um derradeiro clarão amarelo, uma onda de sombras violeta envolvia Richmond Road e os grilos e as rãs nos belos jardins davam início ao seu ruidoso concerto.
À parte o ruído de fundo dos insectos, a rua larga e deserta estava mergulhada no silêncio. Os abastados proprietários das grandes casas retiradas, gerentes bancários, directores de empresas e funcionários públicos de topo, estavam em casa desde as cinco horas e falavam do dia com as esposas, ou tomavam um duche e mudavam de roupa. Dali a meia hora, a rua voltaria a ganhar vida com o trânsito dos cocktails. Mas agora , aquele quilómetro elegante da “Rich Road”, como lhe chamavam os comerciantes de Kingston, continha apenas a expectativa de um palco vazio e o perfume denso de jasmim.»
(Contraponto, 2010. Tradução de Luís Santos)
Assim começa… «A Divina Comédia», de Dante Alighieri
«No meio do caminho em nossa vida,
eu me encontrei por uma selva escura
porque a direita via era perdida.
Ah, só dizer o que era é cousa dura,
esta selva selvagem, aspra e forte,
que de temor renova à mente a agrura!
Tão amarga é, que pouco mais é morte;
mas, por tratar do bem que eu nela achei,
direi mais cousas vistas de tal sorte.»
(Quetzal, 2011. Tradução de Vasco Graça Moura)
Assim começa… “Smilla e os Mistérios da Neve”, de Peter Høeg
«Faz um frio extraordinário, 18º negativos, neva, e na língua que já não é a minha a neve chama-se qanik, grandes cristais quase sem peso que caem agrupados e forram a terra com uma capa de gelo branco, pulverizado.
O escuro de Dezembro sobe do túmulo, dá a impressão de não ter limites, é como o céu lá em cima. Nessa escuridão os nossos rostos são apenas pálidos discos luminosos, o que não me impede de me aperceber da desaprovação com que o pastor e o sacristão da igreja consideram as minhas meias de rede prestas e a choradeira de Juliane, que piorou porque esta manhã ela tomou um calmante e agora está quase sóbria diante da dor. Para eles, nós as duas não respeitamos o clima nem as circunstâncias trágicas. Mas a verdade é que tanto as meias de nylon como os comprimidos, cada um a seu modo, são uma homenagem ao frio e a Isaiah.»
(Edições Asa, 2010. Tradução de Heloisa Jahn.)