Philippe Claudel foi um escritor francês praticamente desconhecido em Portugal até lançar o romance “Almas Cinzentas” (Edições Asa), cuja quantidade e qualidade de prémios conquistados comprovam o que se torna óbvio ao ler a obra: estamos perante um excelente livro. Claudel, apesar do cenário e argumento sombrio do romance, revelou-se, nesta entrevista, uma pessoa alegre, com gosto pela vida e com grande sentido e desejo de Justiça.
Longe de vedetismos desnecessários, acedeu a falar de si e da sua obra enquanto era conduzido, pelo meio do caótico trânsito lisboeta, para uma sessão com os leitores, obrigação que cumpre com gosto tal o prazer que sente em comunicar directamente com o público.
Para si o mundo é demasiado cinzento?
Não, de modo nenhum! Para mim cinzento é uma cor que gosto muito, que tem uma palete com afinidades entre o branco e o preto. Há várias formas de cinzentos: duros, cortantes, doces, rosa, azuis… É apenas uma imagem para demonstrar que a alma humana, nós próprios, podemos estar sempre entre estes dois pontos, o preto e o branco, e que a nossa vida decorre precisamente entre estes dois extremos: o mal absoluto e o bem absoluto. E no fim de contas, a vida de um homem anda entre isso.
E porquê um romance sobre a procura da Justiça, mesmo que tardia e irremediável?
Sim, é um romance sobre o mistério e mistérios que nunca se chegam a compreender. Acho que vivemos num mundo em que queremos que tudo seja explicado e não é fácil explicar tudo, ou compreender tudo. Li muitos romances policiais até há dez anos e depois parei, porque cheguei à conclusão que há sempre um culpado, que é apanhado. Acho que por vezes a realidade é mais sombria, mais difusa e menos acessível. Todo o romance é um inquérito sobre um crime, sobre a própria dor do narrador e sobre os homens. Quando escrevo é para compreender os outros.
Acha que há uma linha divisória entre o Bem e o Mal?
É muito difícil durante uma vida ninguém errar. Quando há circunstâncias terríveis, como as de guerra, todos os aspectos desumanos do homem revelam-se. No momento em que o crime se torna a lei comum é preciso resistir para se manter a Humanidade. Por vezes, a fronteira entre o Bem e o Mal é muito ténue. Há uns anos dei aulas de literatura numa prisão.
Foi uma experiência muito forte e reaprendi muitas coisas. Aprendi que de um momento para o outro podia passar para o outro lado. Se num momento escolho o caminho errado, se não resisto a certas coisas… É difícil mantermo-nos do lado certo.
Questiona a Justiça em geral?
Não é verdadeiramente a Justiça, mas a maneira como funciona. Mas é também uma interrogação sobre como podemos julgar os outros. É muito difícil. O romance ensina a que antes de se julgar os outros devemos julgar-nos a nós próprios.
As personagens femininas dão uma certa luminosidade ao romance. Concorda?
Penso que pura e simplesmente as mulheres são a luz da nossa vida. O mundo sem elas seria ainda mais sombrio. Os actos mais assustadores são sempre feitos por homens. Penso que as mulheres têm mais inteligência, sensibilidade, talento. Há tempos disse isto em Damasco, na Síria, e cinco homens saíram da sala. No romance, mesmo mortas, as mulheres dão luminosidade, humanidade, tal como as estrelas.
Todas as personagens carregam o peso de uma tragédia na sua vida.
A existência humana carrega sempre a tragédia, mais ainda quando se confronta com circunstâncias históricas terríveis. Mas também temos tragédias íntimas. Todos conhecemos a morte, todos temos à nossa volta pessoas que morrem, que estão doentes ou sofrem.
Tem a intenção de mostrar o que há de obscuro em cada um de nós?
Isso também está presente, mas não era uma intenção definida à partida.
Na última página diz “Há tantas coisas que não vemos”…
Sim, mas quando escrevo deixo-me conduzir pela história e tenho o prazer de a contar. Mas é claro que em todos nós há uma parte obscura.
Tem uma visão negativa da vida?
– Não, de forma nenhuma! Não sou a imagem dos meus romances. Penso que os romances existem para nos fazer reflectir sobre nós próprios, sobre a nossa existência, para descobrir as nossas feridas e não virar-lhes as costas.
Não é duro escrever sobre temas tristes?
Não, não! É difícil fazer entender isto, mas quando escrevo sinto uma leveza e um grande prazer, mesmo quando se trata de coisas graves, dramáticas.
É verdade que escreveu este romance apenas durante o Outono e o Inverno?
Sim, “Almas Cinzentas”, que demorou três anos e meio a escrever, só pegava nele quando vinha a chuva e o nevoeiro, porque são climas que se adaptam bem ao livro. Puxam para a introspecção, como o romance.
Porquê situar a acção na I Guerra Mundial e na região da Lorena?
Na verdade, quando escrevi o livro não pensei na Lorena, só vivo lá. Só pensei numa pequena aldeia, que pode ser em qualquer local de França. Sobre o período há várias razões: motivos que afectaram a minha família e geográficos (ainda hoje em toda a região há vestígios). Mas pensei mais no sentimento da guerra. Do outro lado da colina há um país que se guerreia.
A guerra está presente, mas sem combates. A população sente-se feliz por não combater, mas também tem um sentimento de culpa por ver os outros a morrer tão perto…
É um sentimento muito pessoal. Quando escrevi o livro pensei muito na guerra na ex-Jugoslávia. A dois mil quilómetros de França havia centenas de pessoas a morrer diariamente, havia campos de concentração, torturas, atrocidades. E eu estava como as pessoas da aldeia, sabia mas continuava o meu dia-a-dia.
Fez muita pesquisa para poder escrever o romance?
Não, não. Sou muito preguiçoso (risos). Na verdade, quando começo um romance não faço ideia de como vai ser a página seguinte. Parto de uma imagem. Neste caso de uma rapariga na água. Sou um escritor de imaginação e não de pesquisa. O que me interessa é manter-me no verdadeiramente parecido, que seja plausível. Não há datas precisas, nem batalhas, nem lugares, é mais o ambiente.
Quando descobriu que poderia ser escritor?
– Desde que sei escrever e a ler. Aos seis anos comecei a inventar histórias. Escrevia coisas muito más até aos 35 anos, quando comecei a ir a editoras. Publiquei o meu primeiro livro aos 37 anos.
Não tem medo de bloquear?
Até hoje nunca bloqueei, avanço sempre porque quero saber como continua a história.
As comparações que fazem da sua obra com a de George Simenon incomodam-no?
Em França os jornalistas gostam muito de fazer comparações. E porquê Simenon? Porque nas primeiras entrevistas que dei, há seis anos, disse que gostava de Simenon. Mas sinto-me próximo de Simenon através dos universos geográficos e de coisas nele que sempre admirei. Encontra sempre palavras e frases muito simples. Uma criança de dez anos pode ler um ‘Simenon’ sem precisar de ir ao dicionário procurar uma palavra. E com essa grande simplicidade aparente foi muito longe.
Tem recebido diversos prémios literários. Isso é importante para si?
Muito honestamente não, porque não é isso que me faz escrever. É como respirar, se paro de escrever morro. É um gesto natural e vital. Os prémios são efeitos secundários. Dá prazer, não posso mentir, mas há que relativizar as coisas até porque em França há muitos prémios literários. Quando se escreve um livro é muito difícil não receber um prémio (risos).
Como convence alguém a ler “Almas Cinzentas”?
Quando escrevo é para ficar mais próximo do outro. Um livro serve para nos encontrarmos, é um acto de humanidade. Eu penso que literatura é um grande acto de fraternidade.
O livro
A acção de “Almas Cinzentas” decorre numa povoação da Lorena, em 1917, a poucos quilómetros da frente de batalha. Contudo, vivia à margem da guerra, excepto quando por lá passavam os mortos e o feridos vindos da frente. A vida vai decorrendo numa aparente normalidade, até que um dia aparece o cadáver de uma miúda de dez anos. Rapidamente, assim o exigia a situação para se manter o equilíbrio na povoação, é encontrado o culpado: um desertor, que é executado. Contudo, uma testemunha disse ter visto na noite do crime a criança a encontrar-se com o Procurador local. O polícia da aldeia, o narrador da história, nunca acreditou na culpa do desertor, mas só alguns anos mais tarde, numa altura da sua vida em nada tinha a perder, resolveu investigar melhor o caso. Descobre factos assustadores, sobre pessoas da aldeia e, principalmente, sobre si mesmo, o que o leva a voltar a enfrentar fantasmas do passado.
Philippe Claudel, através da sua escrita clara, aproveita a investigação (externa e interna) do polícia para demonstrar que cada pessoa, independentemente da sua personalidade, a qualquer momento pode transpor a linha que distingue o Bem do Mal.
(Entrevista realizada em 2004)