Nesta segunda parte da entrevista concedida ao Porta-Livros a propósito de “A Edição de Livros e a Gestão Estratégica” (edição Booktailors), José Afonso Furtado fala de marketing, do preço dos livros (é ou não determinanate para haver mais ou menos leitores?) e das novas plataformas digitais que poderão substituir o “livro de papel”.
O lucro é compatível com a qualidade ou basta uma boa capa e um bom marketing para obter resultados?
Parto do princípio de que estamos a entender “lucro” em sentido genérico, como o retorno positivo de um investimento, e “qualidade” como referida a um conteúdo que não se limita a repetir receitas requentadas ou a seguir os ditames conjunturais do mainstream. A questão da qualidade vs. dimensão das vendas tem sido objecto de alguns equívocos e de não menor controvérsia, como se o sucesso de uma obra representasse uma espécie de Capitis Deminutio. Ora, se olharmos, por exemplo, para o Top 20 da Ficção no Reino Unido (dados da Bookseller), encontramos as mais recentes obras de autores como Kazuo Ishiguro, A. S. Byatt ou Colm Toibin. Mas, para sermos mais específicos, também convirá clarificar o que se considera um best-seller. Ainda recentemente, na Feira do Livro de Torino, Gian Arturo Ferrari, director-geral da Divisione Libri do Gruppo Mondadori, distinguia os mega-sellers – obras que vendem cerca de um milhão de exemplares, como os romances de Paolo Giordano, Stieg Larsson, Roberto Saviano, Stephenie Meyer ou de Khaled Hosseini – dos best-sellers, que se “limitam” a tiragens de cerca de 100 000 exemplares. Convém não perder de vista que temos como referência o mercado italiano… Mas a situação pode ser aprofundada, e verificamos que existem desde sucessos de vendas num período limitado até obras que escoam números impressivos durante três a quatro anos, caso de Khaled Hosseini e da seu primeira obra Il cacciatore di aquiloni (The Kite Runner) ou casos em que um só título assegura enormes vendas (Gomorra, de Saviano, já escoou só naquele país 2 milhões e 250 mil exemplares) enquanto, por outro lado, as somas agregadas dos títulos de Andrea Camilleri não são menos significativas. Penso assim que a “qualidade” é, nalguns casos, naturalmente, perfeitamente compatível não apenas com o lucro mas mesmo com enormes êxitos.
No que se refere à segunda parte da pergunta, vou centrar-me sobretudo na questão do marketing, pois entendo que se a capa é importante, raramente é decisiva (a propósito: os e-books têm capa?) e, mais, tal como o entendo faz parte de uma estratégia de marketing. Na perspectiva do meu livro, o marketing é uma parte essencial do processo de edição, que se destina não só a assegurar que os produtos são adequados ao seu mercado ou ao seu segmento, mas que procura transmitir a esse target a consciência do valor do próprio produto. Assim, ele engloba tudo aquilo que nos coloca em contacto com o consumidor final, mesmo que por via de prescritores ou outros elos intermédios da fileira editorial, de forma a potenciar as vendas. O marketing é não só um conceito complexo e muito articulado como abrange um conjunto diversificado de operações que não são independentes do “ambiente” em que o negócio se desenvolve. Mais especificamente, a nível da edição de livros, as empresas editoras, do mesmo modo que têm de competir pelo “conteúdo”, têm de competir pelos consumidores, num momento em que, note-se, o mercado está “inundado” de livros. Assim a actividade de marketing tem de tentar captar a atenção (e por isso se fala cada vez mais de uma economia da “atenção”) de intermediários e de gatekeepers na cadeia do livro, desde os editores de jornais e revistas literárias, responsáveis por programas de rádio e televisão, até aos gestores de compras nas livrarias e cadeias… Em síntese, o marketing dos livros deve ser visto como uma cadeia complexa de informação e de interacção em que os dados sobre os livros (capas, resenhas, recomendações, sinopses e toda a espécie de metadados) são fornecidos a um conjunto de intermediários ou directamente aos consumidores finais com o objectivo de conseguir visibilidade para as obras e assegurar a sua presença no mercado. Reconheça-se ainda que os métodos não serão os mesmos de editor para editor e que devem variar conforme o tipo de obra ou o canal a trabalhar. Mas, anda mais importante, não pode ignorar-se que, face à entrada numa sociedade digital, esta actividade (e mais genericamente as relações entre editores e consumidores) não só foi particularmente afectada como tem agora de se exercer de outro modo e através de outros canais. A introdução das novas tecnologias no sector da edição permitem uma informação rica sobre o consumidor que é diversamente descrita como database marketing, data mining ou mass customization. No entanto, tem vindo a vulgarizar-se o conceito segment-of-one pois está mais próximo da essência da estratégia: usar a informação específica sobre o consumidor para executar uma comercialização específica para o cliente. A informação rica sobre o consumidor abrange todas as categorias óbvias de factos técnicos, background do produto e localização de defeitos, e ainda tudo o que se relaciona com branding.
Assim sendo, não se pode negar que uma boa estratégia de marketing é indispensável para obter resultados, o que se refere quer a livros de “qualidade” quer a obras como os “instant books”. Mas atenção, o marketing não é uma ciência, como provavelmente nada o é na actividade editorial, e pensar que uma campanha de marketing (que normalmente é entendido de um modo mais redutor como promoção ou publicitação) pode garantir o sucesso de qualquer produto, é um erro conceptual e de facto, e que pode ter consequências funestas para a própria editora. É ainda Gian Arturo Ferrari quem, interrogado sobre como se “constrói” um mega seller responde que ninguém sabe, que é um fenómeno que os editores não controlam e cuja dinâmica ainda não compreenderam…
Ainda é viável a ideia de editar livros de qualidade que dão prejuízo, sendo compensados por obras “menores” mas mais lucrativas?
Por vezes tenho a sensação de que esse é um dos mitos mais persistentes da actividade editorial. É certo que, nalguma tradição anglo-saxónica, os editores presumiam, de facto, que os rendimentos de títulos de grande sucesso ajudariam a pagar as despesas de livros de menores vendas mas que entendiam publicar por razões de orgulho cultural, respeito literário, convicções políticas ou mero entusiasmo. Só que isso estava em grande medida dependente de um ambiente em que existia uma extensa rede de livrarias independentes que, de igual modo, acarinhavam essas obras, apresentando a “frontlist” de novos títulos e significativas parcelas da “backlist”. Essa situação já não se verifica, e nos termos de Elisabeth Sifton, senior vice-president de Farrar, Straus & Giroux, hoje, “The money men trusted editors less and marketing people more”. Passou assim a ser um “argumento” utilizado pela gama média alta e alta das casas editoras ou dos grupos editoriais, como se necessitassem de “amenizar” junto do seu público mais exigente a publicação de títulos que, por vezes, se aproximam da total indigência mas que produzem retornos substanciais e rápidos. Mas, nada garante que essas mais-valias venham a ser consistentemente alocadas a obras de rotação mais lenta e de maior “prestígio”. Casos houve, entre nós, em que essa opção foi integrada numa estratégia mais geral que passava por afastar autores de “qualidade” cujas obras não atingissem um determinado patamar de vendas. Ou, noutra perspectiva, pode considerar-se que a edição de alguns autores não é mais do que uma “flor na lapela” de um catálogo mainstream. Por outro lado, como já referi, porque se parte do princípio que esses autores darão necessariamente prejuízo? O que se poderá dizer é que se tratam de obras de venda mais lenta e que por isso não acompanham os níveis de retorno que determinados grupos editoriais exigem. Contudo, abdicar desses longsellers é renunciar a um são equilíbrio no mercado do livro, é abandonar a estratégia de catálogo que constitui, em meu entender, a espinha dorsal do sector e a garantia de uma gama diversificada de oferta aos consumidores. É também, igualmente, uma prudente atitude de gestão, pois a aposta privilegiada em best-sellers e mega sellers, para além de outros efeitos, leva a que, quando eles não resultam, as consequências podem ser devastadoras, quer para as editoras quer mesmo para os resultados globais do sector, cada vez mais dependente desse tipo de produtos. Não por acaso, Gian Arturo Ferrari explicava a descida do volume de negócios em Itália (entre 2 e 3%) não em virtude da recessão e da crise mundial mas pela ausência de novos mega seller, do mesmo modo que são conhecidas as dificuldades da Scholastic ou da Bloomsbury quando não têm novos títulos de J.K. Rowling.
Ora, podemos apontar diversos exemplos de editoras que têm conduzido uma sábia e prudente constituição de um catálogo extremamente coerente e onde não será fácil encontrar esses títulos “menores” para garantir a sua substância. Editoras que mantêm uma política de custos controlados, sem obsessão de crescimento a qualquer preço e que consolidaram uma forte e respeitadíssima reputação. Só para dar alguns exemplos entre nós, vejam-se os casos da Assírio & Alvim, Cotovia ou Relógio d’Água (que, aliás, encontraram inclusivamente formas de colaboração) ou, mais recentemente, a Tinta-da-China ou Sextante (ambas galardoadas nos Prémios Edição Ler | Booktailors). Mas pensemos igualmente na Actes Sud, em França, fundada há já 31 anos por Hubert Nyssen e Christine Le Bœuf, ou na Sellerio Editore, em Itália, criada em 1969 por Elvira e Enzo Sellerio, contando com o apoio de Leonardo Sciascia e do antropólogo Antonino Buttitta. Sciascia que está aliás ligado à ideia de uma casa editora que se caracterize por uma cultura “amena”, uma cultura da leveza que não renuncia à elegância, uma cultura de ideias, naturalmente, mas apresentadas sob a forma de objectos belíssimos. E afinal que outra editora poderia ter descoberto um enorme escritor como Gesualdo Bufalino, um típico professor de liceu siciliano, com 61 anos, esquivo, praticamente sem vida social, e de quem Elvira Sellerio consegue publicar, em 1981, Diceria dell’untore, que vence logo o Premio Campiello nesse ano? Afinal, a qualidade pode pagar…
O acto de gestão que mais directamente interessa ao consumidor: baixar o preço dos livros poderia originar uma melhoria das vendas? E, já agora, os índices de leitura poderiam subir com preços mais baixos, ou a base do problema é mesmo uma questão cultural e social?
Não estou nada seguro que o acto de gestão que mais interessa aos consumidores seja simplesmente uma diminuição do preço dos livros. Em primeiro lugar, no nosso país escasseiam dados que nos permitam avaliar a evolução dos preços no consumidor e a sua relação com preços de actividades concorrentes ou do chamado “cabaz de compras”. Eu não posso, com rigor, afirmar que os livros em Portugal estão caros, nem que, se estivessem mais baratos, tal originaria um aumento de vendas ou um incremento dos índices de leitura. Por outro lado, em termos mais gerais, não é fácil caracterizar o grau de elasticidade da procura preço no caso dos livros. Em meu entender, haverá segmentos em que a sensibilidade à variação de preço será real, mas, em contrapartida, decerto encontraremos outros em que predomina a baixa elasticidade ou mesmo a inelasticidade.
Como explicou Kelvin Lancaster, todos os produtos e serviços podem ser vistos como um “package of attributes”, atributos que podem incluir, para além do preço, características físicas e factores como o acesso, disponibilidade e imagem. Todas as decisões de compra, mesmo que de modo não consciente, obrigam o consumidor a alcançar um compromisso aceitável entre os diferentes atributos que constituem esse package. Neste meu livro, refiro com algum detalhe as estratégias genéricas em Michael Porter, designadamente a liderança nos custos (cost leadership), a diferenciação (differentiation) e o foco (focus). De acordo com Porter, a liderança no custo privilegia a produção padronizada pelo menor custo possível por unidade para dar resposta ao público cuja procura é sensível ao preço. O custo mais baixo pode funcionar como mecanismo de defesa da empresa contra a agressividade dos seus concorrentes, especialmente no que se refere à guerra de preços. Contudo, o domínio pelo custo pode ser posto em causa pelo progresso técnico ou pela evolução do gosto dos clientes e seus hábitos de leitura e de lazer, situação que se apresenta, aliás, como cada vez mais volátil.
Mas o perigo de uma guerra de preços entre os concorrentes pode fazer com que estes se empenhem numa estratégia de custo, sacrificando as suas margens. Tivemos recentemente um exemplo disso no Reino Unido. Perante a proximidade do Natal, as cadeias de livrarias chegaram a praticar descontos médios de 41% nos bestsellers, sendo HarperCollins o editor alvo de maiores baixas de preço (média de 28,9%) e os títulos de Hachette Livre a representarem o maior valor, na ordem dos 105 milhões de libras. É certo que essa tendência já se vinha a desenhar desde meados de Outubro, com os preços a baixarem 3,4% face ao preço médio de venda de £7.88, quando comparados com os últimos três anos. Simon Juden, chief executive da Publishers Association, classificou como “demencial” o nível dos descontos atingido, alegando ser incompreensível que os produtos de maior sucesso de uma indústria fossem alvo dos maiores “saldos”. Apesar disso, apesar dos preços médios de venda serem os mais baixos desde 2001, em 2008 o número de exemplares comprados diminuiu 0,4% e o volume de vendas 1,6% face ao ano anterior, segundo dados da Nielsen BookScan. Mais ainda, os descontos fizeram “perder” 500 milhões de libras ao comércio do livro e provocaram ainda maiores dificuldades à sobrevivência das livrarias independentes. Sam Husain, da Foyles, apelando a um “jogo mais nivelado”, afirmava que o “valor não reside apenas no preço”, justamente um aspecto a que concedo a maior atenção neste livro.
Há outro aspecto que vale a pena salientar e que este exemplo revela bem: é difícil estabelecer uma correlação entre índices de leitura e preços mais baixos, inclusivamente porque os descontos mais significativos se verificam, paradoxalmente, nos bestsellers ou nos livros com um público garantido, como o demonstra a já longa experiência da presença de livros nos super e hipermercados.
As novas plataformas digitais poderão ajudar a fazer baixar o preço do livro junto do consumidor?
Na minha perspectiva, espera-nos num futuro previsível, uma situação que se pode caracterizar, nos termos de Milad Douehi, como uma dupla vida do livro: por um lado, o livro impresso, mas que também poderá estar disponível online; por outro o livro electrónico propriamente dito, que será um objecto da rede e um objecto de rede. Um futuro híbrido, em que livro impresso e electrónico coexistem mas em que cada um terá as suas propriedades e os seus processos e práticas. Posto isto, o livro electrónico é ainda um objecto mal definido, agregando várias formas distintas, que vão desde meras versões digitalizadas de obras impressas ou pensadas no âmbito da cultura do impresso, até às obras criadas desde logo sob forma digital, passando por diversas instanciações textuais com a integração de novas dimensões multimédia. Em qualquer dos casos, o mundo do livro e da edição enfrenta uma situação completamente nova na sua longa história: a necessidade de uma mediação tecnológica. Na verdade, o livro impresso sempre teve a vantagem de não exigir qualquer dispositivo técnico para ser lido, de ser imediatamente visível, folheável e consultável e de ser fácil de emprestar. A simplicidade do seu manuseamento, essa relação directa e física com o “objecto livro” – incluindo no plano das posturas corporais – são aspectos postos agora em questão, já que em todos os suportes históricos da escrita o leitor pode aceder visualmente ao texto sem qualquer outro procedimento. Em contrapartida, como refere Emmanuël Souchier, a leitura em ecrã é tributária de duas condições indispensáveis: por um lado, é necessário um dispositivo técnico que permita transformar os dados ilegíveis registados na matéria memória de uma máquina computacional num texto legível num ecrã. Por outro, uma fonte de energia para alimentar esse dispositivo. Aproximamo-nos assim de experiências que sempre foram familiares para os editores e auditores/espectadores de música e de vídeo: ao contrário do texto impresso, a mediação através da tecnologia de “equipamentos de leitura” é uma parte intrínseca da fruição dos registos musicais e do vídeo, em que as actividades de audição, gravação e reprodução estão normalmente associadas. Neste campo, a mediação tecnológica vulgarizou a aceitação de expectativas bastante específicas por parte dos consumidores, pois sabe-se de antemão, por exemplo, que essas tecnologias virão a tornar-se obsoletas, não se garantindo a sua usabilidade a prazo.
Temos assim um primeiro aspecto que, até pelo seu ineditismo, sugere imensas questões – escolha do equipamento, dimensão do ecrã, tecnologias de suporte (LCD ou e-paper) formatos de ficheiro, interoperabilidade, etc. – que não são fáceis de perspectivar: seja como for, e antes de colocar a questão do preço dos livro neste novo ambiente, o consumidor ou alguém por ele (bibliotecas, como hipótese), tem de adquirir um aparelho de leitura, que pode ir desde um vulgar desktop PC até aos smartphones. Se considerarmos os e-readers, por exemplo, estão comercializados entre nós apenas o Bookeen Cybook Gen 3 por 359€ e o BeBook por 329€, e na Europa poderemos ter acesso com facilidade ao Sony Reader PRS-505 por cerca de 270€, ao iRex Iliad (599€), ao iLiad Book Edition (499€), ao Irex Digital Reader 1000S (699€), para referir apenas os mais conhecidos. O famoso Kindle não é aqui considerado por não estar disponível no continente europeu.
Significa isto que o leitor terá de despender pelo menos 270€ para ter a possibilidade de poder ler os livros electrónicos que entender comprar, o que pode ser francamente dissuasor. Se passarmos agora à questão do preço das publicações electrónicas, o que verificamos desde logo é que se está a seguir o modelo que foi utilizada pela indústria musical (com as consequências que se conhecem…), ou seja, a política de preços é decalcada a partir dos bens físicos (livro impresso). Por exemplo, o acordo entre a FNAC francesa e Hachette prevê que o preço de venda dos e-books se deve situar entre os 10 e 15% abaixo do preço da edição em papel. Se observarmos o que acontece na Waterstone’s, encontramos situações dificilmente compreensíveis. Por exemplo, a última obra de Hilary Mantel, Wolf Hall, cujo preço base é de £18.99, custa £14.99 na versão capa dura e £15.19 na versão e-book, em virtude de o livro impresso beneficiar de um desconto de 40% e a versão digital de apenas 20%. Ou seja, o e-book é mais caro do que a versão hardcover. O mesmo se passa com o bestseller Host de Stephenie Meyer, que é apresentada em 4 versões: hardback, por £9.59, paperback, por £8.22, próxima edição em paperback, ainda não disponível, por £4.99 e, por fim, e-book por £11.74!!
Já o modelo da Amazon.com é diferente, tentando fixar o preço dos livros para o Kindle em $9,99, numa estratégia que se aproxima do modelo iTunes/iPod. Só que, tanto num como noutro caso, estamos a falar de retalhistas, que estão condicionados pelo preço de venda sugerido pelo editor. Ora são os editores quem, precisamente, têm tido maior incapacidade de compreender a realidade da edição electrónica, de encontrar os modelos de negócio adequados e em fazer face a à realidade de uma nova cultura do digital que, nas suas práticas, fragiliza e torna desadequados os modelos e as instituições ainda dominantes.
Por outro lado, num segmento específico, o STM (scientific, technical and medical), o que se tem verificado é que o preço das revistas científicas, agora em grande parte já apenas disponíveis em versão electrónica ou papel+electrónica, tem vindo a aumentar (na ordem dos 58% entre 1998 e 2003).
Por último, convirá não esquecer que o mundo digital possibilita toda uma nova série de formas de compra/acesso aos conteúdos, nem sempre em benefício do consumidor, à medida que o sistema de criação de valor se move do negócio com bens físicos, tangíveis e consumíveis, para um negócio de serviços electrónicos. Por exemplo, estão a disseminar-se práticas como a venda do uso de um produto em vez do próprio produto, a introdução do mecanismo de “pay per use”, a cobrança por “connect time” e mecanismos que tendem a passar da propriedade do produto à “service orientation”, do direito pleno ao direito de acesso e da economia da compra e venda a um modelo da licença.
Por tudo isto, não só me não parece viável a diminuição de preços graças às novas plataformas tecnológicas, como me parece que o que está em jogo são questões de muito maior envergadura e que tenderão para um novo ecossistema da edição e consumo de livros.
Sente que as editoras portuguesas estão preparadas para o futuro, ou seja para as novas plataformas que poderão vir a substituir o papel?
Como já referi anteriormente, das editoras que operam em Portugal (talvez esta formulação seja mais adequada do que editoras portuguesas) sabemos muito pouco. Pode acrescentar-se que as que trabalham o segmento do livro escolar (Porto, Texto…), não só estão preparadas como já integraram plenamente as novas plataformas no seu workflow e na oferta aos seus clientes. Também as que editam obras de referência (dicionários, enciclopédias…) estarão certamente mais atentas aos novos desenvolvimentos tecnológicos, o que não impede que, há bem pouco, o presidente do Grupo Planeta, José Manuel Lara, tenha assinalado que “no mundo da enciclopédia não soubemos realizar uma boa transição do papel para a Internet”. Sublinhe-se ainda o caso do Centro Atlântico, que desde há cerca de dez anos opera nesta área, mas com a ressalva, salientada aliás pelo seu director, de se tratar de uma editora vocacionada para livros técnicos.
Convirá, contudo, esclarecer um pouco mais do que estamos a falar. É usual estabelecer uma equivalência, que é redutora, entre a edição digital e a distribuição electrónica de conteúdos, em particular através dos diversos dispositivos de leitura (os chamados e-readers). Cada upgrade ou nova versão do Kindle, cada evolução nas tecnologias e-ink ou e-paper, provoca uma incontrolável excitação nos meios de comunicação social. Contudo, o impacto da digitalização na edição desenrola-se, porventura mais sustentadamente, em pelo menos outros três aspectos: o nível dos sistemas de operação, o nível da gestão e manipulação do conteúdo e o nível do marketing e serviços. O menor conhecimento destes aspectos levou John B. Thompson a integrá-los naquilo a que chamou “The Hidden Revolution”. Estes pontos remetem, certamente, para uma revolução no produto, mas talvez neste momento mais para uma revolução no processo. Quero crer que uma parte já significativa da edição em Portugal terá adoptado fluxos de trabalho digitais sobretudo ao nível dos sistemas de operação (dados financeiros e a informação sobre a produção, gestão de royalties e outras transacções, gestão e controlo dos stocks, etc.). Já em relação aos outros aspectos, não estou tão certo, e menos ainda em relação à distribuição electrónica de conteúdos.
A Internet e a web oferecem oportunidades e ameaças ao sector editorial, que se deve preparar para integrar uma economia do conhecimento com o ónus de não poder exercer uma influência directa no ritmo da mudança ambiental. Se pensarmos no editor, que tinha como tradicionais preocupações a criação e gestão de um catálogo, a fidelização de um conjunto de autores e a promoção e distribuição dos seus produtos, verificamos que ele se vê agora forçado, como refere Paul Mercieca, a desenvolver um mix de competências adicionais na passagem para um ambiente web, designadamente o controlo do conteúdo digital, o editing para ecrã, a aquisição de conteúdo e processos de conversão, a reestruturação do conteúdo (plausivelmente em estruturas de dados SGML ou XML), noções de web design, de usabilidade e legibilidade em ecrã e ainda a dominar o problema decisivo do acesso e da search & discovery.
Em abono da verdade, deve acrescentar-se que o nosso mercado é, talvez, um caso mais preocupante mas não está isolado no que se refere à atitude das editoras perante os desafios do novo mundo digital. No decurso da Feira do Livro de Londres do corrente ano, a IBS, em conjunto com a Bookseller e a Book Industry Communication (BIC), realizaram um amplo inquérito junto dos editores que nela estiveram presentes. Os resultados não deixam de ser surpreendentes, como alguns dados demonstram: só 53% dos editores tinham planos já estabelecidos para venderem livros sob qualquer forma digital, com a maioria (40%) a tencionar propô-los exclusivamente no seu web site; apenas 42% esperava “aumentar significativamente” o número de títulos disponíveis em formato digital nos próximos 5 anos; à backlist é atribuída ainda menor prioridade, pois apenas 40% dos editores planeiam digitalizar os títulos que a integram; mesmo ao nível do software de gestão do negócio e da cadeia de abastecimento, só 28% utilizam um sistema integrado; por fim, relativamente ao arquivo do conteúdo digital, verifica-se que 28% não guardam uma cópia digital dos seus títulos, que 7% entrega essa tarefa à Google, que 29% não têm qualquer ideia sobre o assunto e que uns escassos 36% possuem um repositório digital.
Confrontados com estes números, as explicações encontradas pelos analistas vão desde considerar que o grande problema é a falta de clareza sob como obter proveitos de um produto digital (Rodney Elder, business development manager da IBS Bookmaster), até detectarem uma certo elemento de “retardamento” na visão dos editores (Kerr McRae, deputy m.d. e chief operating officer de Headline). Mas, a perspectiva mais certeira talvez resida no reconhecimento de que a prioridade, para a maioria dos editores, é ainda o formato físico ou, como refere Mark Smith, m.d. de Quercus, muito embora possamos não vislumbrar completamente como será o nosso futuro, “pensei que a maioria das pessoas já tivesse percebido que é preciso lá estar, porque se nós não estivermos alguém estará por nós.”
Este ponto cautelar é tanto mais necessário quanto as mudanças que agora ocorrem são exógenas como poucas vezes o foram na história do livro e da edição, induzidas pelo desenvolvimento nas indústrias computacionais. Na verdade não foram os editores quem deu início ao desenvolvimento de livros e textos electrónicos, mas sim pequenas start-up companies de Silicon Valley ou grandes companhias multinacionais como Microsoft ou Adobe, para quem as aplicações para leitura de documentos digitais são uma peça essencial no seu protagonismo em todas as facetas da edição electrónica. Mais recentemente a estreiteza de perspectivas e a actual porosidade do mundo da edição, tem permitido movimentos e tomadas de posição de empresas ou tradicionalmente estranhas ao sector, como Google ou Apple, ou que outras se reconfiguram em movimentos agressivos e porventura oligopolísticos, como Amazon, ela própria também, na verdade uma recém-chegada. Ora, como refere Terje Hillesund, todas estas empresas se encontram no centro da economia da informação e algumas são líderes mundiais no seu sector; os seus movimentos estratégicos no negócio da edição electrónica são parte de planos mais largos para reforçar as suas posições dominantes nas infra-estruturas de distribuição de conteúdos digitais à escala global.
PERFIL
José Afonso Furtado, é licenciado em Filosofia, trabalhou em diversos organismos governamentais na área da cultura. Entre 1987 e 1991 foi presidente do Instituto Português do Livro e da Leitura. Entre 1998 e 2007 integrou o Conselho Superior de Bibliotecas. Actualmente pertence à Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura, é director da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (desde 1992) e docente do curso de Pós-Graduação em Edição – Livros e Novos Suportes Digitais, da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.
Já publicou obras como “O Que é o Livro”, “Os Livros e as Leituras: Novas Ecologias da Informação” e “O Papel e o Pixel: Do Impresso ao Digital – Continuidades e Transformações”.