Mario Mendoza – Entrevista a propósito de “Satanás”

td-MARIOMENDOZAO escritor colombiano Mario Mendoza foi uma das melhores surpresas da edição de 2005 das Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. Não só pelo excelente livro semi-autobiográfico “Satanás” (Temas & Debates), como também pela sua energia transbordante. Nesta entrevista realizada em 2005 explica como se escreve um livro tão arrebatador e como se vive numa cidade como Bogotá.

Satanás” é um romance bastante duro, até um pouco cruel. Foi difícil escrever um livro assim?
Sim. Entre os eventos de 1986, os que dão origem à história, e o romance passaram quinze anos. É uma matança, um massacre, que ocorre em vários pontos de Bogotá. É uma matança levada a cabo por um estudante de literatura, um homem de quarenta e tal anos meu colega de universidade. Demorei muito tempo a escrever “Satanás”. Tentei escrever o romance em 1987 mas não aguentei a história. Em 1995 tentei voltar a escrever, mas o erro era tentar escrever sobre o assassino e a coisa saiu mal. E esperei, esperei, tomei notas, escrevi aos bocados, até quem 2000 constatei que o melhor era escrever a história da cidade, das vítimas. E então começou a fluir, e “Satanás” já não é a história de um criminoso é a história de uma cidade, onde está o assassino.

Deve ter sido um processo doloroso…
Foi um processo catártico, difícil, complicado. Até porque na Colômbia ainda há sobreviventes do massacre e familiares das vítimas. Era muito arriscado publicar o romance ainda com gente viva que poderia sentir-se ferida, ofendida…

Houve sobreviventes que já leram este livro? Já teve reacções?
Não, por sorte nunca se pronunciaram à Imprensa, não comentaram nada. Eu tinha muito medo.

Na altura em que conviveu com o assassino notou alguma coisa de diferente nele?
Não, estávamos em 1986 no Departamento de Literatura da Universidade de Bogotá. Éramos todos um pouco estranhos. Portanto, um homem estranho entre pessoas estranhas passa despercebido. Então ninguém se apercebeu de nada. Era uma pessoa muito silenciosa, introspectiva, calada e tímida. A surpresa foi quando o vimos nos títulos dos jornais e numa notícia que deu a volta ao mundo. Nessa altura percebemos que era uma pessoa estranha, mais do que pensávamos.

Marcou a sua vida?
Convivi com a história dentro de mim durante quinze anos. Viajei, estudei em Espanha, trabalhei em Israel, fui professor de Literatura nos EUA, regressei à Colômbia e a história ia sempre na consciência, incomodando, algo que estava pendente. Era uma dívida que tinha com o passado. Finalmente, quando escrevi o romance pude descansar. Para o bem ou para o mal a história está contada.

Acha que o Mal, em geral, triunfou sobre o Bem?
No romance sim. É estranho porque não acredito nisso – tenho outros livros nos quais há sempre algo de esperança. Em ‘Satanás’ não há nenhuma esperança, não sei porque saiu assim. Tentei mudar o final e que uma das protagonistas sobrevivesse, mas não consegui. Há algo na própria lógica do romance que implicava que tinha de morrer e que toda a gente morria nessa noite. Eu queria respeitar os acontecimentos tal como eles foram. No romance há um triunfo total da perversidade, do mal, quase como umas nuvens escuras que acabam por dominar as personagens.

Ficou surpreendido com o sucesso do livro?
Sim, quando ganhou o prémio em Espanha eu era um autor menor, apenas conhecido no âmbito latino-americano. Ainda não tinha conseguido internacionalizar os livros. O primeiro surpreendido com o Prémio Six Barrals fui eu. Não pensei que o conseguisse porque era um romance muito arriscado na perspectiva estética, muito difícil. Está entre o realismo degradado e o realismo sujo e uma certa lógica de telenovela. Tem algo de pastiche, de melodrama. A mistura é muito difícil de entender.

Vive em Bogotá. A cidade é mesmo assim tão complicada?
É uma cidade estranha – temos na Colômbia um conflito de grandes dimensões. É praticamente uma guerra com 50 anos. Na cidade não se vê a guerra, pode-se sair, ir ao cinema, leva-se uma vida normal. Estudas, trabalhas, mas há uma atmosfera à volta que indica a guerra. Há uma temperatura de desastre, de caos. Faz-te sentir que estás num local especial e que estás numa permanente proximidade com a morte. Mas, ao invés de ser negativo, acaba por ser positivo. Só na proximidade com a morte se entende a importância da vida. Nesta cidade afirma-se a vida como não se afirma em nenhum outro local do mundo.

É por isso que continua a viver em Bogotá?
Não posso viver em nenhum outro local do mundo. Quando saio da Colômbia tenho a sensação de câmara lenta, que a realidade pára. E falta-me algo, a adrenalina, a vertigem de uma cidade latino-americana. México, Rio de Janeiro, São Paulo, Bogotá, são todas cidades apocalípticas, mas quando te acostumas a viver lá tudo o resto se parece com um lugar para velhos. Mas enquanto tiver combustível, gasolina, prefiro viver entre o caos.

Isso acaba por se reflectir na sua escrita e nos temas que escolhe.
Os temas variam de um romance para outro. Eu estou próximo da crónica jornalística (sou colunista do principal jornal diário colombiano) e estou constantemente entre o jornalismo e a literatura. Não distingo a fronteira, não conheço os limites e as histórias também as encontro de modos diferentes.

Considera-se mais jornalista ou escritor?
Escritor, apesar de ser muito difícil sobreviver como tal na Colômbia. O último romance que acabei de publicar tem um perfil mais político e num momento de crise como vivemos agora é muito complicado. Mas é um privilégio para um artista estar na Colômbia. É impossível aborrecer-se, há uma lógica e uma dinâmica perpetuamente veloz. Para um realizador, um pintor, um bailarino, um escritor, esse bombardeio permanente de imagens, de coisas e notícias vai produzindo estímulos para uma obra. Penso que é por isso que a imprensa internacional considera que o movimento literário na Colômbia é dos mais fortes da América Latina. Há uma nova geração depois de García Márquez que está a liderar a literatura urbana na América Latina.

O facto de Gabriel Garcia Márquez ser colombiano acabou por ajudar ou ofuscar os outros escritores do país?
Acho que como todos os grandes talentos, uma estrela que brilha tanto acaba por fazer sombra aos que estão à sua volta. A nossa vantagem é que não somos os filhos de García Márquez, mas os netos. Então para os que vieram imediatamente a seguir a García Márquez foi muito difícil porque a sua figura era demasiado luminosa, potente, poderosa. Mas nós somos os netos, uma geração trinta anos posterior e a verdade é que não temos com ele uma relação parricida. É uma excelente relação, um vínculo amistoso e cordial. É outra América Latina que a Europa deve descobrir nos próximos anos.

Mas não há o risco de na Europa se estar sempre há espera que os novos escritores sejam do género de García Márquez e depois fiquem desiludidos?
Claro, mas na Europa vão começar a modificar a percepção do que pode ser a literatura colombiana actual. Em Portugal já está editado Santiago Gamboa e Jorge Franco e agora ‘Satanás’. Nós os três já podemos dar uma ideia do que é a literatura actual da Colômbia.

Consegue viver-se na Colômbia sem pensar na sociedade conturbada que existe?
É inevitável, se se está inserido numa realidade tão conflituosa – com os cartéis de droga, a guerrilha –, que se produza em nós uma temperatura social. Nos livros, mesmo que não seja o tema central, aparece esse clima. Mas, no fundo, acaba por ser algo (não digo positivo, porque não quero fazer uma apologia da violência) que fornece material de trabalho para um artista. Acaba por se transformar a violência em forças criativas ou estéticas.

É curioso que algo tão negativo acabe por ser impulsionador da criatividade…
É como certas flores que se dão bem nos cemitérios. Nos sítios mais feios florescem as melhores flores.

Se num passe de mágica a Colômbia se transformasse num país calmo o que seria dos artistas?
… (gargalhadas)… não sei (gargalhadas)… é uma pergunta difícil.

Não se sentem rotulados por serem oriundos de um país associado ao tráfico de droga?
Inevitavelmente… quando cheguei ao aeroporto do Porto puseram-me logo à parte e revistaram tudo o que trazia. Faz parte do estigma de viver na Colômbia. Mas também faz parte de um estereótipo e aprende-se a viver com ele e não há problema. Este movimento cultural pode ajudar a mudar a imagem do país.

E também pode ajudar a uma transformação interna na Colômbia?
Oxalá. É o que todos esperamos, que as forças da vida, da arte e da criatividade acabem por ser mais fortes que as forças da morte, que são as da guerra.

(Entrevista realizada em 2005)

2 pensamentos sobre “Mario Mendoza – Entrevista a propósito de “Satanás”

  1. marcelo patu

    O livro está bem aq na minha frente. Lí Sataná antes de ontem, porém, reli, e agora bem devagar,
    observando todos os detalhes desta magnífica trama. ainda estou “de cara” com a potência de escrita deste homem. estou estudando o romance, quero aprender a ser assim, necessário dentro da necessidade. sem por um ponto a mais ou a menos, e sempre fazendo coisas inesperadas dentro do inesperado. a capacidade de redigir os hambiêntes, conduzindo todos os personagens perfeitamente em suas psicologias. por exemplo, na hora do estupro de Maria, a friesa revelada pelo estuprador em dizer :” cara ou coroa” para ver que ia primeiro. até mesmo na sutileza de dizer q a personagem era virgem, deixando o leitor ainda mais irritado com os caras. e a maior de todas é ainda infligir a um personagem secundário uma caracteristica física que alguns homens sofrem, como a ejaculação precoce. isso é mta maestria na escrita. este romance n é para ser lido, mais sim estudado a fundo por aqueles que qerem aprender com um mago das palavras certas na hora certa. Mario Mendoza eu te agradeço do fundo do meu coração, por proporcionar este livro aos homens da literatura.
    muitoobrigado.

  2. Pingback: SATANÁS, de Mario Mendoza | Libru Lumen

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