José Eduardo Agualusa – Entrevista a propósito de “Milagrário Pessoal”

O angolano José Eduardo Agualusa é um contador de histórias. Pequenas ou grandes, não há como fugir a isso. Milagrário Pessoal, o seu último romance (edição Dom Quixote), é um excelente exemplo disso. Há uma história de amor, central, mas à volta dela decorre uma infinitude de outras histórias. E no meio de tudo isto e ao longo de todo o livro há uma defesa (e um elogio) da língua portuguesa. Agualusa, numa visita em Novembro ao Norte de Portugal, falou de tudo isto, e muito mais, ao Porta-Livros e manifestou a sua estranheza por não haver outros autores a dedicarem os livros seus à língua portuguesa. A conversa serviu também para falar de Angola e da profunda desilusão que sente por ver o país seguir um caminho que não era o previsível depois de terminada a guerra. “Parece um disparate completo, não se compreende, não faz sentido nenhum”, diz relativamente à situação que se vive em Angola.
(Fotografia de Jorge Simão)

Começando por uma pergunta básica, diga-me o que o levou a colocar os neologismos como base do seu romance Milagrário Pessoal?
A questão dos neologismos é um pretexto. O livro conta a história de um homem que se apaixona por uma mulher e que para a seduzir lhe oferece uma maneira de dizer o mundo, uma linguagem nova. A história dos neologismos é um pretexto para contar essa outra história de amor e para falar da construção de uma língua, desta aventura que é a construção da língua portuguesa.

E porque sentiu necessidade de dedicar um livro à língua portuguesa?
É uma coisa que já está dentro de mim há muito tempo, é uma questão que me interessa muito. Eu trabalho com a língua, com a palavra, e desde que me conheço que tenho um grande interesse em perceber como é que surgem as coisas, tudo o que diga respeito à linguagem, a origem da língua. Para mim é um assunto absolutamente fascinante, que, aliás, acho que interessa à maioria das pessoas.
Por exemplo, mesmo este barulho todo que se fez, aqui, à volta do acordo ortográfico, não merecia, porque não é um assunto muito interessante. Mas mexeu com as pessoas porque mexe com a linguagem. O que é estranho é não ter havido ninguém antes de mim a escrever um romance sobre a língua portuguesa, porque parece um tema óbvio.

Conhecedor como é do português que se fala em Angola, Portugal, Brasil, pensa que haverá uma tendência para este se unificar ou cada vez mais para em cada região ou país haver um português diferente?
Há sempre dois sentidos, duas forças. As línguas tendem a separar-se em situações de isolamento. O crioulo de Cabo Verde só foi possível porque aconteceu numa ilha. Não há crioulos em Angola, no Brasil, porque não houve isolamento suficiente. Houve tanto em Angola como em Moçambique situações quase de crioulo, mas depois nunca chegou a afirmar-se. Ora a situação que vivemos hoje no mundo é o contrário disso, de grande mobilidade. Nunca como agora houve tanto movimento de pessoas e ideias entre todos os países de língua portuguesa. Hoje, qualquer português, desde o da cidade ao do interior, do campo, tem um conhecimento relativamente profundo do português do Brasil graças às telenovelas. Isto é algo completamente novo. Há trinta anos um português não sabia distinguir a variante carioca da variante nordestina, hoje qualquer um sabe. Da mesma maneira, há actualmente um grande número de brasileiros em Angola, em Portugal, de portugueses em Angola, então há um trânsito enorme que nunca houve. E isso faz com que a língua se aproxime. Os jovens portugueses hoje apropriam-se da variante do português angolano, por causa da música, como a dos Buraka Som Sistema, que tem uma influência grande na juventude.

Sente que há pessoas reticentes, até conservadoras, em adoptar palavras novas que podem vir de Angola, ou do Brasil, ou isso será mais a posição de algumas elites que ficam mais incomodadas?
A gente vê na juventude, e a portuguesa é muito receptiva. Aliás, a juventude é sempre receptiva a novidades. Acho que só entram na língua as palavras – essa questão entra no livro a dada altura, há uma jovem linguista que diz isso – que têm de entrar, as outras não entram, ficam à porta. As línguas são assim mesmo, e o que tento mostrar no livro é isso: o português é uma construção colectiva desde a origem, com uma contribuição africana muito grande desde o início. É bom lembrar que antes de Portugal colonizar África, África colonizou Portugal durante oito séculos, mais tempo do que Portugal passou em África, através dos árabes. E a contribuição do árabe para a língua portuguesa é essencial e toda a gente a conhece. As pessoas não conhecem tanto a contribuição africana, mas há, há muitos séculos, palavras dentro da língua portuguesa que vêm do quimbundo, de Angola, que estão lá há tanto tempo que as pessoas não se apercebem disso. Por exemplo, “cambada”, que vem de “camba/amigo”, e “minhoca”.
O português é uma construção conjunta de toda a gente que fala português e isso é que faz dele uma língua tão interessante, com tanta elegância, elasticidade e plasticidade. Mesmo em relação ao Brasil, também insisto sempre, não acredito que vá haver uma aproximação, mas, se acontecesse, era uma reaproximação, porque na realidade o português do Brasil tem a ver com o português arcaico.

Não pensa que seria necessário desdramatizar um pouco o aparecimento de palavras novas, como as que chegam, por exemplo, através da internet, como “googlar”?
Dessas palavras, só vão ficar as que são úteis, aquelas para as quais não há um equivalente. Lembro que quando foi das novelas houve uma grande discussão em Portugal, que entretanto desapareceu, com o argumento de que o português do Brasil estaria a colonizar Portugal, o que não se verificou. Entraram aquelas expressões, duas ou três, para as quais não havia um equivalente, as outras não entram. Os portugueses não dizem “cara”.
Mesmo dentro de Portugal parece-me mais ameaçador, e aí já se nota a diferença, a uniformidade de sotaques da própria televisão. Aqui no Porto, por exemplo, por que é que não há locutores com sotaque do Porto nas televisões nacionais? Ou alentejano? Isto é mais importante, mas ninguém fala nisso. Há um movimento de uniformização por causa das televisões.

Agora, falando um pouco a um nível mais pessoal. Por vezes, quando está a escrever, não sente necessidade de criar palavras? E, por outro lado, não há palavras que o repugnam e que gostaria de eliminar do dicionário de português?
Bem, eu aí, como escritor, tenho a vantagem de não utilizar quando não gosto. O livro também fala um pouco disso, de certas palavras que são utilizadas por políticos, horrorosas, burocratas. Por outro lado, também há situações em que eu, enquanto escritor, sinto necessidade de criar. Este livro tem algumas brincadeiras, algumas situações, mas a mim interessa-me, por exemplo, os arcaísmos. Tenho muita pena de certas palavras muito bonitas que se perdem, que deixam de ser utilizadas, e o que tento fazer nos meus livros é recuperá-las, colocá-las em circulação. Não é fácil, mas acho que todos temos essa obrigação de não deixar morrer certas palavras.

Chega a incorporar personagens reais nas suas histórias. O que é que sente ao mexer na vida dessas pessoas e a criar facto ficcionais à volta delas?
Há vários tipos de personagens. Este livro, por exemplo, é uma homenagem a três personalidades angolanas, duas das quais foram marcantes na minha formação, o Mário António de Oliveira, que não conheci pessoalmente, e o Mário Pinto de Andrade. E um anarquista angolano muito pouco conhecido, uma homem que combateu na guerra civil de Espanha e depois fez a libertação de Paris. A minha personagem principal pega nisto, numa amálgama destas três figuras. O Mário Pinto de Andrade aparece como personagem num outro livro meu, Estação das Chuvas. Para mim foi uma maneira de continuar um diálogo com ele, era uma pessoa por quem tinha uma consideração muito grande e com quem gostava muito de conversar.
Noutros casos, é uma maneira de dar uma maior credibilidade à ficção. Acho que se tem de ter algum cuidado, é evidente, mas não é nada que eu tenha inventado, é uma coisa que a literatura universal faz.

As suas personagens ficcionais chegam a ganhar vida própria, perde o controlo sobre elas no processo de escrita, ou já sabe desde o início como vão evoluir?
Não, não sei. Acho que o mais interessante é isso, e se alguma coisa aprendi ao longo destes vinte anos que trabalho como escritor é deixar as personagens seguir os seus caminhos. O trabalho do escritor é seguir as personagens. Há determinadas personagens que nós pensámos que poderiam ter mais força e acabam por se revelar muito frágeis, e há outras que seriam secundárias e começam a ganhar força. Eu aprendi a deixá-las crescer. Devemos tentar segui-las e ir aprendendo a medida que nos vão abrindo portas e entrando noutros quartos escuros, que não conhecemos. O que o escritor tem de fazer é investigar, descobrir o que há a descobrir, e deixar a personagem crescer.

Alguma personagem sua alguma vez o desiludiu seguindo caminhos que não estava a espera que seguisse?
Não. Desiludiu mais no outro sentido de que há algumas personagens que eu esperava que crescessem e fossem mais fortes e revelam-se mais fracos. Há personagens que desaparecem nos livros. As mais interessantes, e isso não é novidade, são as mais perversas, porque são mais complexas e a maldade para mim é sempre uma estranheza. Que as pessoas sejam boas parece-me natural, que as pessoas sejam mas é que é estranho. Normalmente, as personagens perversas acabam por crescer mais, ganhar uma densidade maior.

Aproveita este livro – que tem a história central de amor, a questão da língua portuguesa – para contar várias histórias, nomeadamente aborda o problema da guerra em Angola. Sente-se um contador de histórias? Também escreve muitos contos, tem necessidade de ir contando essas pequenas histórias?
Sim, sim. Este livro tem imensas histórias ligadas à questão da língua e da linguagem e a maior parte delas são como rios que depois vão desembocando no mesmo oceano, que é a história maior.
Para mim, escrever é contar histórias, embora haja grandes escritores que são capazes de escrever um livro sem uma história. Mas são escritores com um estilo tão forte, com tantas ideias, que conseguem sustentar um livro assim. Para mim ainda é importante contar histórias.

Agradou-me bastante neste livro ver histórias como a do Zé do Telhado e atroca de correspondência com Camilo Castelo Branco. Isso é uma maneira de prender o leitor ou surgiu-lhe naturalmente?
Claro que vamos aprendendo estratégias de cativar o leitor.
O livro é também uma homenagem ao Camilo que foi um escritor com uma riqueza vocabular muito grande. É seguramente o escritor de língua portuguesa que tinha o maior fascínio pela palavra e com uma maior riqueza de vocabulário e então era quase impossível não prestar essa homenagem ao Camilo. Sendo ainda por cima um escritor que deixou tantos e tantos livros que permite jogar inventando livros. Os próprios camilianos ficam na dúvida; mesmo o camiliano mais feroz não conhece toda a obra do Camilo.

Vive entre Portugal e Angola. Como é que tem vivido esta fase em Angola do pós-guerra?
Infelizmente, há um ano que não vou a Angola, porque de há um ano para cá a situação complicou-se bastante politicamente. Em termos económicos o país continua a crescer, não tanto como seria previsível, e infelizmente a crescer também de forma desorganizada e com distorções muito graves. Mas continua a crescer… Agora do ponto de vista político, infelizmente aconteceu o contrário, ou seja, houve uma degradação. O que está a acontecer nos últimos meses é bastante preocupante, porque o regime está fechado. Os jornais e o jornalismo independente é algo de muito importante nesta fase, mas há falta de diálogo e falta de instrumentos de contestação. E o jornalismo independente tem vindo a ser perseguido. Dois dos principais jornais independentes foram comprados por uma empresa que ninguém sabe quem está atrás dela. E num jornal onde eu escrevia, A Capital, para o qual deixei de escrever, duas edições foram queimadas à saída da gráfica. Há jornalistas a ser perseguidos; Rafael Marques sofreu um atentado à vida dele há muito poucos dias. É muito preocupante.
Não se compreende, mesmo de um ponto de vista meramente estratégico. Parece um disparate completo, não se compreende, não faz sentido nenhum.
O regime percebeu que, faça o que fizer, desde que não sejam atrocidades desmedidas, não vai haver contestação, porque o país está a crescer economicamente e porque no caso de Portugal tem interesses cada vez maiores em Angola. Ao mesmo tempo que Angola tem vindo a aplicar dinheiro em Portugal e então o dinheiro fala mais alto, infelizmente.

Como encara este “regresso” de portugueses a Angola, como muitos encaram como sendo uma espécie de regresso ao “Eldorado” do passado?
Eu acho que as condições, mesmo políticas, não são as melhores. Quando se pensa que Angola continua a dificultar a concessão de vistos de trabalho… A maioria destes portugueses vai trabalhar com vistos de turismo, portanto vai trabalhar em situação igual, isto já diz tudo, não é favorável, não é como muita gente pensa, nada é fácil em Angola. Infelizmente, o que tem vindo a acontecer é que muitas pessoas se desiludem. Isso é mau porque eu gostaria era que houvesse um investimento continuado e sustentado, que as pessoas fossem bem recebidas e que ficassem, e não que fossem apenas ganhar uns trocos para voltar daqui a uns meses. Mas, infelizmente, não vejo condições políticas para isso.

Como é que os angolanos, as pessoas no dia a dia, encaram a presença dos portugueses em Angola?
Portugueses e não só, há portugueses, brasileiros, chineses, etc. Acho que, tal como em qualquer outro país, se houver crescimento as pessoas são bem recebidas. Se, como é o caso actual, esse crescimento não favorece a generalidade da população e a miséria continua a ser regra, há sempre sectores da sociedade que reagem negativamente. E Angola não é excepção. Angola tem uma forte corrente xenófoba, muito forte mesmo, que se explica assim: as pessoas vêem muita gente que vem e ganha dinheiro fácil e que se associa a sectores do regime mais corruptos e a generalidade da população não beneficia de nada. É uma tragédia e é muito triste que seja assim, muitíssimo lamentável. É um facto, Angola não é um país fácil e é um país no qual existe uma fortíssima corrente xenófoba, não há como iludir isto.

Como é que a literatura e outras formas de arte podem contribuir para melhorar a situação?
Eu acho que a literatura e as outras formas de arte – a música em Angola é muito importante – podem servir para provocar debate, para fazer com que determinadas questões possam ser discutidas mais abertamente. Resumindo, podem contribuir para uma melhoria do pensamento. A arte deve servir essencialmente para isso, para reflectir, e isso é particularmente importante num país como Angola que tem poucos mecanismos de diálogo, onde as pessoas ainda não se habituaram a falar umas com as outras.

9 pensamentos sobre “José Eduardo Agualusa – Entrevista a propósito de “Milagrário Pessoal”

  1. Ana Claudia

    O último romance é banal demais. O pior que li nesse ano. Quase 195 páginas que se leem em um dia e de uma banalidade que dói. Nota 3. Dinheiro jogado fora.

    1. Lui Fagundes

      Ana, você precisa aprender a “degustar” o português… Faça isso e aproveite os livros do Agualusa. Trabalho com edição de livros no Brasil, e sempre que passo algum tempo sem ler um bom livro, recorro a Agualusa… e nunca me decepciono.

  2. Sandra Patrício

    Não posso concordar com a opinião de Ana Cláudia. É um romance de amor em vários sentidos, entre um homem e uma mulher, entre um escritor e a sua língua, e entre um leitor e obras e escritores dos quais não tinha ouvido falar (Mário António de Oliveira) ou pelos quais nutria algum preconceito ( Camilo e o obrigatório Amor de Perdição na escola), e figuras fantásticas que também desconhecia (o Quitubia, Inocêncio da Câmara Pires). Um livro que nos dá a conhecer outros, um livro que nos faz querer pesquisar outros livros e lê-los não pode nunca ser banal. Obrigada José Eduardo Agualusa

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