“A Música da Fome” – J.M.G. Le Clézio

dq-A Música da Fome“A Música da Fome”, obra de J.M.G. Le Clézio editada pouco antes do escritor francês receber o Nobel da Literatura de 2008, chegou há pouco ao mercado português por mão da Dom Quixote. É um livro belíssimo cheio de sentimento sobre sonhos perdidos, inspirado na vida da mãe do autor, que serviu da base à construção da personagem principal, Ethel Brun. Através da sua vida regressamos a um período conturbado da História de França. Através de histórias pessoais (e aparentemente simples) Le Clézio conseguiu traçar um perfeito retrato da sociedade francesa numa época onde o egoísmo e a indiferença eram dominantes. Bem escrito e bem estruturado, “A Música da Fome” dá-nos um soco no estômago sem que nos apercebamos, pois o que nos revela é tudo menos inocente.
No romance, Ethel Brun é a filha de um casal de exilados, Justine e Alexandre, proveniente da ilha Maurícia, cuja vida acompanhamos a partir da década de 20 em Paris até ao pós-Segunda Guerra Mundial.
Ethel sente uma grande afeição por Samuel Soliman, o seu tio-avô, que tem o sonho de ir viver para o pavilhão da Índia Francesa que foi construído para Exposição Colonial. Assim, a sua infância é passada entre os passeios por Paris com o avô e a vida caseira, estabelecendo uma forte ligação com Samuel, até porque o pai passa muito tempo entretido com negócios duvidosos que destroem a riqueza da família e com uma antiga namorada que teima em fazer parte da sua vida. Samuel morre antes de concretizar o seu sonho e cabe a Ethel (que torna sua herdeira) levá-lo por diante. Esta tenta não desiludir o falecido tio, mas os sonhos desmedidos do pai acabam por contaminar irremediavelmente toda a gente, arrastando-os para o abismo.
Já na adolescência, Ethel vive uma história de amizade com Xénia, uma refugiada e vítima da Revolução Russa, que está na miséria depois de ter vivido anos dourados no seu país de origem – mal sabia Ethel que estava destinada a um futuro semelhante.
É um livro sobre sonhos perdidos porque a dada altura todos vão vendo os seus sonhos desfeitos. Samuel não consegue em vida montar a sua casa no pavilhão, Alexandre anseia por uma existência grandiosa mas nada mais consegue para além de desperdiçar dinheiro e levar a família gradualmente à ruína, afastando-se cada vez mais dos tempos gloriosos na ilha Maurícia. Paralelamente, Hitler começa a impor-se e França está no seu caminho. Quem lá vive não lhe fica indiferente, mas não lhe faltam admiradores em Paris. Assim, este é também um livro sobre pessoas que vivem alheadas do mundo que os rodeia. Nos salões da casa de Alexandre em Paris “assistimos” à chegada do nazismo, perante a indiferença e até a admiração de muitos convivas que frequentam as reuniões sociais promovidas pelo pai de Ethel. Este é um dos aspectos mais marcantes do romance de Le Clézio, a ingenuidade com que encararam a ascensão nazi. Quase ninguém se importou com o anti-semitismo cada vez mais evidente, já que cada um se importava era consigo próprio – mais à frente, já perto do final do romance, Le Clézio, pelos olhos de Ethel, constata e demonstra que muitos do que foram colaboracionistas já se desenrascavam após a chegada dos Aliados a Paris.
O autor faz assim quase imperceptivelmente um retrato muito cáustico e sombrio de certas franjas (pelos vistos bem grandes) da sociedade francesa durante a ocupação nazi.
Outro retrato impressionante é o da vida em Nice, cidade onde se refugiou a família de Ethel durante a ocupação de Paris pelos nazis. A descrição da fome, da decadência e da necessidade de levar, fosse como fosse, a vida por diante constitui outro dos pontos fortes deste romance, pois mostra que em situações extremas as relações entre as pessoas mudam radicalmente, permitindo esquecer traumas do passado e perdoar, porque agora as necessidades são outras, chocantes de tão básicas. Curiosamente, é também em Nice que Ethel inicia a sua vida amorosa, com um inglês que a levará de volta à Paris já liberta pelos Aliados.
“A Música da Fome” é, nota-se sem dificuldade, um projecto muito pessoal de J.M.G. Le Clézio que encheu de emoções e sentimentos um romance que em apenas 190 páginas alberga vidas tão preenchidas e tantas histórias cativantes.

2 pensamentos sobre ““A Música da Fome” – J.M.G. Le Clézio

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  2. Renata

    Oi,
    gostaria de saber se tem como eu comprar
    esse livro e o ”Sangue da Terra” no Brasil,
    pois moro aqui. Ou até mesmo um site de compra que entregue no Brasil
    Quero muito encontrar.

    Obrigada,
    Renata

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