“Os Passos da Cruz” – Nuno Júdice

dq-os_passos_da_cruz6“Os Passos da Cruz”, novela da autoria do essencialmente poeta Nuno Júdice editada pela Dom Quixote, é uma obra de uma grande sensibilidade e beleza onde o passado e o presente se cruzam e, mais do que isso, se misturam, sendo notável a forma como o autor permite ao leitor que “habite” dois espaços temporais em simultâneo. Pode parecer complexo (e é) mas é um risco a correr por parte de quem procura um livro que escape aos cânones habituais do linear contar de uma história – e os mais “preguiçosos” não se preocupem, é um livro curto – 124 páginas.
Com base no diário de Antónia Margarida, uma nobre do século XVII casada por conveniência com um fidalgo falido, seguimos a história desta mulher maltratada pelo marido, Brás Teles, que dela só pretendia o dote e a posição social – como se vê há aqui muitos pontos em comum com a actualidade. A violência de que é vítima Antónia é de uma brutalidade atroz, tanto física como psicologicamente, de tal maneira que até o próprio “vilão” tem dificuldade em aceitar o que faz – não é por caso que não tem espelhos em casa.  
No presente, o narrador, de passagem por Lamarosa – a aldeia onde o infortunado casal vivia –, tenta reconstruir a vida daquela mulher maltratada e ele próprio se mistura com a vida daqueles que são objecto do seu estudo e da sua curiosidade. São desta forma ultrapassadas as barreiras do tempo (não as do espaço, porque tudo decorre em Lamarosa).
Mas não é só a história de Brás Teles e Antónia que é escrutinada, já que também na existência do narrador há uma relação complexa com Rosa (uma revolucionária obcecado pela revolta do proletariado que deixa para segundo plano a vida pessoal), vivida no tempo da resistência ao regime fascista, relação essa que ele vai recordando (mais do que isso, interpretando) com a ajuda de uma historiadora que reencontra em Lamarosa na actualidade. Essa sua relação perturba-o da mesma forma que a obsessão que nutre por Maria Antónia.
Num ambiente irreal e fantástico, numa viagem nocturna de carro no solitário mundo rural de Lamarosa (ambiente muito bem descrito por Júdice), o narrador encontra a própria Maria Antónia no presente e aí definitivamente as histórias e os tempos cruzam-se.
“É possível que me estivesse a acontecer o que alguns cientistas tinham apontado como a dualidade do cérebro; e um dos hemisférios, o oculto, estaria a transmitir ao que funcionava uma cena vivida, nem que fosse numa memória inconsciente, e logo reprimida para que eu tivesse de a reconhecer no futuro, sentindo de modo angustiante a repetição do tempo, como se nada daquilo que vivemos, de facto, fosse novo.” Palavras do narrador que ajudam, mais do que qualquer apreciação de um leitor, a entender a essência da novela “Os Passos da Cruz”.

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